quarta-feira, 11 de junho de 2014

Zeugma

Da série “Figuras de linguagem na Bíblia”. Leia também:



A palavra grega zeugma quer dizer “jugo” (uma peça de madeira que une dois animais para que trabalhem juntos). Quando usada no campo da Retórica, duas definições divergentes são apresentadas:

  • A Wikipédia (em português) define zeugma como “figura de linguagem que consiste na omissão de um ou mais elementos de uma oração, já expressos anteriormente”. Muita ênfase é dada às palavras “já expressos anteriormente” (inclusive, este detalhe torna-se a diferença entre zeugma e elipse, segundo a Wikipédia). De acordo com esta definição, zeugma é simplesmente um tipo especial de elipse. Uma rápida pesquisa online revelará dezenas de sites de “ajuda a estudantes” em português que simplesmente repetem o que está no site da Wikipédia (a maioria, sem ao menos citar a fonte!).
  • Já a Wikipedia (em inglês) começa sua definição explicando que a palavra quer dizer “jugo”, e portanto define a figura como “uma única frase ou palavra unindo diferentes partes de uma frase”. A ênfase nesta definição não está na omissão de um ou mais elementos de uma frase, mas no fato de que, devido a esta omissão, um único elemento (um verbo, por exemplo) é ligado (como que por um jugo) a diferentes partes da frase.

Esta segunda definição é defendida por diversos autores (Bullinger, Harris — professor de inglês na Vanguard University) e dicionários (Oxford). Eles destacam a relação de dependência entre os elementos da frase que é criada pelo uso desta figura de linguagem, que combina com o significado original da palavra. É esta definição que apresento neste pequeno estudo.

Podemos distinguir pelo menos quatro tipos de zeugma usados na Bíblia. Veja abaixo uma definição resumida de cada um destes quatro tipos, com alguns exemplos.

Prozeugma (ou protozeugma)

Quando o elemento que serve de jugo se encontra no início da frase. Exemplo:

  • Lc 24:27 — “E começando por Moisés, e por todos os profetas, explicava-lhes o que dEle se achava em todas as Escrituras”. Gramaticalmente, “começando” só pode se aplicar a “Moisés”, que está no começo do Velho Testamento. O sentido implícito na frase é que Ele começou por Moisés, e depois continuou através dos profetas (a versão Atualizada acrescenta o verbo “discorrendo” em relação aos profetas). Realmente, porém, não há erro, e não é necessário acrescentar outro verbo. O sentido do que Lucas escreveu, inspirado pelo Espírito Santo, é claramente entendido, e a figura de linguagem chama a nossa atenção não para os verbos (“começando”, “discorrendo”), mas para os livros da Bíblia. A mensagem transmitida é que o Senhor poderia ter começado por qualquer livro do Velho Testamento, pois todos eles igualmente falam dEle. Em todos os profetas e em todas as Escrituras, o tema central sempre será o nosso amado Senhor Jesus Cristo.

Mesozeugma

Quando o elemento que serve de jugo se encontra no meio da frase. Exemplos:

  • Dt 4:12 — “… porém, além da voz, não vistes figura alguma”. A ordem das palavras no hebraico é: “figura nenhuma vistes a não ser a voz”. Parece errado, pois uma voz não se vê — se ouve! Parece que seria necessário acrescentar o verbo “ouvistes” — “figura nenhuma vistes, somente ouvistes a voz”. Na realidade, porém, temos aqui mais um exemplo da perfeição das Escrituras. Através da omissão do segundo verbo (“ouvir”), um único verbo (“ver”) governa a frase toda. Assim o fato de que nada foi visto é enfatizado, e o erro da idolatria (que está ligada com “imagens”, com aquilo que se vê) é claramente condenado.
  • Mc 13:26 — “Então verão vir o Filho do Homem nas nuvens, com grande poder e glória”. No grego, a ordem das palavras é: “… com poder grande e glória”, uma construção gramatical que, de acordo com Bullinger, é “peculiar”, fora do normal. Assim um único adjetivo (“grande”) é aplicado a dois substantivos (“poder” e “glória”) numa forma não-convencional, chamando nossa atenção para a grandeza do poder e a grandeza da glória da vinda do Senhor. Que dia maravilhoso será aquele!
  • I Co 3:2 — “Com leite vos criei, e não com carne”. O único verbo que rege os dois substantivos (“leite” e “carne”) quer dizer, literalmente, “dar de beber” (é traduzido “regar” nos vs. 6 e 7 deste mesmo capítulo), e aplica-se sempre a líquidos, não a sólidos. A tradução literal é: “Leite vos dei a beber, não carne”. A versão Trinitariana e a versão Corrigida tentam solucionar o aparente problema traduzindo “vos criei”, enquanto que a Atualizada acrescenta “vos dei” antes de “alimento sólido”. Mas não há erro — há, sim, uma figura de linguagem que confere beleza poética à frase, ao mesmo tempo em que destaca a diferença entre “leite” e “carne”. “Leite vos dei a beber, não carne” é muito mais belo, expressivo e enfático do que a forma rígida: “Leite vos dei a beber, não vos dei carne a comer”.

Hipozeugma

Quando o elemento que serve de jugo se encontra no final da frase. Exemplo:

  • At 4:28 — “… fazerem tudo o que a Tua mão e o Teu conselho tinham anteriormente determinado que se havia de fazer”. O verbo “determinar”, no final da frase, só se aplica ao conselho de Deus — o Seu conselho determinou, mas a Sua mão fez. A omissão do verbo “fazer” (ou “executar”) não é um erro — é uma figura de linguagem que destaca a harmonia tão perfeita que existe entre tudo que Deus planeja e tudo que Deus executa. Os homens podem planejar uma coisa, e depois executar outra (por falta de vontade de cumprir o plano original, ou por falta de capacidade); mas tudo aquilo que Deus determina, Ele cumpre. Em outras palavras: a mão e o conselho de Deus determinaram tudo, e a mão e o conselho de Deus fizeram tudo. Os dois (os planos e a execução destes planos) são inseparáveis.

Sinezeugma

Quando o elemento que serve de jugo se liga a mais de dois elementos. Exemplo:

  • Êx 20:18 — “E todo o povo viu os trovões e os relâmpagos, e o sonido da buzina, e o monte fumegando; e o povo, vendo isso …”. O único verbo usado (“ver”, no início e no final da frase) só poderia ser usado dos relâmpagos e do monte fumegando; os trovões e o sonido deveriam ser regidos pelo verbo “ouvir”. Porém se todos os verbos tivessem sido usados, a leitura seria muito menos expressiva. Da forma como está, temos um quadro impressionante com som (trovões e sonido de trombetas) e imagem (relâmpagos e monte fumegando) que impressionou o povo, e deveria nos impressionar até hoje, servindo a Deus “com reverência e piedade, porque o nosso Deus é um fogo consumidor” (Hb 12:28-29).

Conclusão

Que estes poucos exemplos extraídos da obra de Bullinger nos incentivem a pesquisar as Escrituras com mais cuidado e paciência, aproximando-nos da Bíblia com a convicção de que ela é perfeita em todos os seus detalhes. Quando encontramos algo que parece indicar uma relação desequilibrada entre os termos de uma frase, é bem provável que estamos diante de algum tipo de zeugma, e que há algum detalhe ali que o Espírito Santo quis enfatizar quando usou esta figura de linguagem.

Como pode um coração inteiro numa lágrima se expressar?
Por que uma pérola se esconde tão fundo no mar?
Senhor, ajude-me também Teu livro perscrutar!


© W. J. Watterson