sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Devemos jejuar hoje em dia?

Introdução

Qual deve ser a posição do cristão hoje em relação ao jejum? Nesta presente Dispensação, será que jejuar é algo indicado (que todo cristão deve praticar), inadequado (que todo cristão deve evitar), ou indiferente (quem faz não erra, quem não faz não erra)?

Para responder esta pergunta precisamos pesquisar o Novo Testamento, reconhecendo a diferença entre a Velha Aliança (a época da Lei) e a Nova Aliança (a época da graça em que vivemos hoje). As práticas de Israel na época do Velho Testamento e dos Evangelhos (com seus sacrifícios, dízimos e jejuns) pertencem à Dispensação da Lei, e não são o guia prático para os salvos hoje — hoje vivemos na Dispensação da Graça, ou da Igreja (um período de tempo que começou em Atos cap. 2 e continuará até o Arrebatamento da Igreja).

Comecemos definindo a palavra. “Jejum”, no NT, é a tradução das palavras gregas nesteia, nestis (substantivos) ou nesteuo (verbo), cuja definição, de acordo com o dicionário de Thayer, é a seguinte:
“Abster de alimento ou bebida como um exercício religioso; ou completamente, se o jejum durasse somente um dia, ou de alimentos costumeiros e escolhidos, se continuasse por vários dias.”
A palavra (nas suas diversas formas) aparece trinta e uma vezes no NT, e podemos dividir estas ocorrências em quatro grupos:

  1. Referindo-se a uma experiência comum, do cotidiano. Algumas vezes a palavra não tem nenhuma conotação religiosa, mas simplesmente descreve alguém que, por que não teve oportunidade de comer, está em jejum. Por exemplo, quando a multidão seguiu o Senhor para ouvir Seus ensinos, Ele disse: “Tenho compaixão da multidão, porque já está comigo há três dias, e não tem o que comer; e não quero despedi-la em jejum, para que não desfaleça no caminho.” Ele simplesmente quis dizer que Ele não queria despedir a multidão com fome; Ele queria primeiramente lhes dar algo a comer. Há quatro ocorrências da palavra com este sentido (Mt 15:32; Mc 8:3; II Co 6:5, 11:27). Estas ocorrências não tem relação com o assunto deste estudo, pois não se referem a jejuar no sentido religioso ou espiritual.
  2. Referindo-se a uma festa nacional dos judeus. Uma vez (At 27:9) a palavra refere-se ao dia da Expiação, um feriado nacional para os judeus. Esta ocorrência também não tem relação com o assunto deste estudo, pois descreve algo que fazia parte do cerimonial religioso do Velho Testamento.
  3. Ensino. Dezenove vezes a palavra é usada num contexto em que ensino está sendo dado, e convém analisar estas ocorrências mais detalhadamente abaixo.
  4. Exemplos. A palavra é usada sete vezes apresentando seis exemplos de alguém jejuando: Ana (Lc 2:37), o Senhor Jesus (Mt 4:2), o fariseu (na parábola de Lc 18:12), Cornélio (At 10:30), alguns irmãos em Antioquia (At 13:2-3), e Paulo e Barnabé (At 14:23).

Destes quatro grupos, somente os dois últimos tem alguma relação direta com o nosso assunto, e podem nos revelar alguma coisa sobre qual deveria ser nossa posição em relação ao jejum nesta dispensação em que vivemos. Vamos considerá-los mais detalhadamente.

Ensino que inclui menção ao jejum

As dezenove ocorrências deste grupo referem-se a quatro ocasiões diferentes:

i) No Sermão da Montanha (Mt 6:16-18)

Precisamos entender que este ensino foi dado pelo Senhor Jesus quando a Dispensação da Lei ainda estava em vigor; seria somente no dia de Pentecostes registrado em Atos cap. 2, alguns anos depois, que a Igreja começaria a existir. Portanto, “quando examinamos os detalhes do manifesto [no Sermão da Montanha] é necessário ter discernimento. Uma aplicação geral de tudo leva à confusão; ao invés disto, devemos nos perguntar: quais detalhes eram para o Seu povo de então, quais são para o Seu povo hoje, e quais para o Seu povo no futuro?” (HEADING, J. Comentário Ritchie do NT, volume 1. Pirassununga, Editora Sã Doutrina, 2002. Pág. 103).

De modo geral, podemos dizer que os princípios espirituais que estão por trás dos detalhes no Sermão da Montanha são princípios eternos, mas que os detalhes materiais e físicos não tem, necessariamente, aplicação direta a nós nesta Dispensação. Um exemplo deve deixar isto claro: em Mateus 5:23-24 o Senhor fala sobre trazer uma oferta ao altar, e a necessidade de primeiro reconciliar-se com um irmão ofendido, para depois apresentar a oferta. O ato físico de trazer um animal diante do altar não deve ser praticado hoje, mas o princípio que está por trás deste ato (isto é, que é necessário reconciliar-se com seu irmão antes de servir a Deus) certamente continua válido (veja I Jo 4:20, por exemplo). Preservamos o princípio (a prioridade do perdão) pois ele é eterno, mas não imitamos o ato físico (trazer uma oferta ao altar) pois ele pertence a outra Dispensação.

Lembrando do contexto em que estes versículos se encontram, não podemos basear nossa prática quanto ao jejum nos dias de hoje no detalhe físico mencionado aqui. O princípio espiritual destacado (que não podemos servir a Deus desejando ser vistos pelos homens) continua sendo válido, mas o ato em si é mencionado aqui no contexto da Velha Aliança, e não podemos usar este trecho para aprender sobre o ato de jejuar na Nova Aliança.

ii) Respondendo aos discípulos de João

Os três Evangelhos sinóticos registram o questionamento dos discípulos de João e dos fariseus quanto ao fato dos discípulos do Senhor não jejuarem (Mt 9:14-15, Mc 2:18-20 e Lc 5:33-35 — doze ocorrências). O Senhor deixa claro que, enquanto Ele estivesse com os Seus, eles não teriam razão para jejuar, e acrescenta: “Dias porém, virão, em que lhes será tirado o esposo, e então jejuarão”. John Heading, citado acima, mostra que estes “dias” vindouros seriam “entre a Sua morte e Sua subsequente ressurreição” (Ibid., pág. 176). Adam Clarke, no seu comentário sobre este versículo, afirma que os cristãos primitivos entendiam desta forma as palavras do Senhor, referindo-se ao tempo que Seu corpo esteve no sepulcro.

Da mesma forma que o ensino anterior (no Sermão da Montanha), este também foi dado quando a Velha Aliança ainda estava em vigor, portanto não podemos aplicá-lo literalmente a nós hoje. Até o aspecto profético deste ensino — quando o Senhor fala que haveria um tempo em que os Seus discípulos jejuariam porque Ele estaria separado deles — já foi plenamente cumprido no período entre a Sua morte e ressurreição. Realmente “foi tirado o esposo” durante aqueles dias tão tristes, mas a tristeza dos discípulos logo se transformou em alegria quando viram o Senhor ressurreto — e a alegria que os inundou quando viram o Senhor vivo é uma alegria da qual disse o Senhor: “ninguém vo-la tirará” (veja Jo 16:16-22).

Hoje Ele não está ausente de nós — fisicamente, talvez, mas Ele mesmo prometeu estar conosco todos os dias e fazer morada em nós, Seus servos (Mt 28:20 e Jo 14:23). Lembrando disto, temos no ensino destes versículos que estamos considerando uma forte indicação de que o ato de jejuar não é necessário para nós nesta Dispensação. Durante o curto período em que o Senhor esteve separado dos Seus pela morte, eles tiveram razão para jejuar; mas desde o momento glorioso da ressurreição, tal razão não existe mais.

Este acontecimento, portanto, indica que não há muita razão para o cristão jejuar hoje, devido à comunhão especial que temos com nosso Salvador.

iii) Após a Transfiguração (Mt 17:21; Mc 9:29)

Este é outro trecho que pertence à Velha Aliança, e não podemos simplesmente transportar as práticas daquela Dispensação para os nossos dias. Devemos aprender com o princípio espiritual apresentado pelo Senhor Jesus, mas entender que não vivemos mais sob o jugo da Lei.

O princípio que o Senhor está apresentando é que aquela obra que Ele acabara de realizar (expulsando um demônio) não era algo que poderia ser feito displicentemente, mas que exigia um preparo prévio para verdadeiramente estar em comunhão com Deus. Heading explica que o Senhor está enfatizando que “colocar a alma em harmonia com Deus” não era algo automático, e sugere que o sentido de oração e jejum neste contexto é que “a oração é o contato contínuo do coração com Deus; o jejum é a contínua falta de contato com o mundo” (Ibid., pág. 305). Em outras palavras, para servir a Deus de forma eficaz, precisamos estar em contato com Deus continuamente (ilustrado pelo ato da oração), e dispostos a abrir mão até de coisas lícitas, se estas atrapalham nosso serviço (ilustrado pelo ato do jejum).

Este trecho também não se aplica literalmente a nós — ensina-nos lições espirituais, mas não nos fala nada sobre o ato do jejum para a nossa Dispensação.

iv) Escrevendo para a igreja em Corinto (I Co 7:5)

Esta quarta e última ocasião em que o Novo Testamento apresenta ensino relacionado ao jejum é a única que trata especificamente desta dispensação. As versões Atualizada e Corrigida da SBB omitem a palavra “jejum” neste versículo, mas ela é incluída pela versão da SBTB. O apóstolo não está dando ensino diretamente sobre o jejum, mas afirmando que um casal cristão deve dar importância à sua intimidade, apenas quebrando esta intimidade se for para aplicar-se “ao jejum e oração”, e logo depois ajuntando-se novamente.

Deste trecho podemos entender que, na igreja primitiva, era normal que cristãos praticassem o jejum. Mas é importante perceber que esta é a única passagem em todas as epístolas do Novo Testamento que dá ensino sobre o jejum (e isto, como já destacamos, indiretamente). Não é uma exortação para que jejuemos, nem são instruções sobre como jejuar, mas simplesmente um aviso para não permitir que a oração e o jejum interrompessem definitivamente a intimidade do casal; poderiam se separar para estas atividades, mas logo depois deveriam ajuntar-se novamente.

Devido à ausência de instruções claras quanto à prática do jejum, talvez podemos entender esta prática como um daqueles aspectos da Lei que demoraram um pouco mais para serem deixados de lado pelos judeus (como o voto que Paulo fez em Jerusalém; At 21:22-26).

v) Conclusão preliminar

Das dezenove ocorrências da palavra “jejum” e suas derivadas num contexto de ensino, vimos que apenas uma destas referências refere-se ao período em que nós vivemos, e simplesmente reconhece que alguns cristãos naquela época jejuavam. Se contrastarmos isto com as palavras do Senhor Jesus, quando disse que não fazia sentido Seus discípulos jejuarem enquanto Ele estava com eles, podemos concluir, por enquanto, que o jejum não é algo importante para esta Dispensação em que vivemos.

Mas resta ainda considerar os exemplos mencionados acima.

Exemplos de jejum no NT

Os seis exemplos de jejum no NT se dividem em dois grupos de três: os três primeiros referem-se à Velha Aliança, e os últimos três referem-se à Nova Aliança. Visto que os primeiros três não tem relação direta com o assunto deste estudo, basta mencioná-los: Ana (Lc 2:37), o Senhor Jesus (Mt 4:2), e o fariseu (na parábola de Lc 18:12).

O exemplo de Cornélio (At 10:30) também não serve para nos guiar, pois Cornélio nem era convertido quando jejuou. Pode ser que ele aprendeu sobre o jejum com os judeus (dos quais era amigo; At 10:22); mas sua prática tem mais a ver com uma busca religiosa da verdade por um incrédulo, do que com o serviço inteligente de um salvo.

Restam apenas os exemplos de Paulo e Barnabé; primeiramente com outros irmãos em Antioquia (At 13:1-3), e depois em outras igrejas no final da viagem que começou no cap. 13 (At 14:23). Um elemento em comum nestes dois exemplos é que o jejum está intimamente ligado à oração: “Então, jejuando e orando …” (At 13:3); “… orando com jejuns …” (At 14:23).

Estes exemplos são importantes; mas não podemos deixar de perceber o contraste com outras atividades no Novo Testamento, como a oração, por exemplo. Se temos três exemplos de jejum no livro de Atos e um nas epístolas (I Co 7:5), lemos de oração quase cem vezes nesta parte da Bíblia. O contraste é impressionante, e não pode ser ignorado.

Também precisamos destacar a ocasião destes exemplos. Ambos ocorreram por ocasião da primeira viagem de Paulo, que foi provavelmente no ano 48 a.D. Esta viagem foi feita antes de qualquer uma das epístolas do NT terem sido escritas, quando as igrejas locais ainda estavam na sua infância, e quando alguns elementos do judaísmo ainda permaneciam entre os salvos. Cerca de dez anos depois disto (por volta do ano 58 a.D.), lemos de “milhares de judeus que creem, e todos são zeladores da Lei” (At 21:20). Estes exemplos provavelmente indicam a demora dos judeus salvos em abandonar todas as práticas do judaísmo. Um judeu não teria tanta dificuldade para abandonar o Templo e os sacrifícios de animais; mas outros aspectos da Lei (como a circuncisão, o dízimo, o jejum) demoraram muito mais para serem deixados de lado (até mesmo por cristãos esclarecidos como Paulo, conforme o exemplo já citado do seu voto no cap. 21 de Atos).

Concluindo

Temos considerado, neste breve estudo, todas as referências ao jejum no NT, e descobrimos que, referente a esta Dispensação em que vivemos, encontramos:

  • Apenas um trecho doutrinário que menciona o jejum (I Co 7:5), e isto indiretamente;
  • Apenas dois exemplos de cristãos jejuando (At 13:1-3 e 14:23) — ambos ocorridos no ano 48 a.D., antes do Novo Testamento ser escrito, e antes do judaísmo ser completamente desarraigado do meio da Igreja.
  • Nenhuma exortação nas epístolas sobre o ato de jejuar, ou sobre o significado ou importância deste ato.
  • Uma profecia (Mt 9:15) feita pelo Senhor Jesus que indica que, nestes dias presentes, não temos razão para jejuar (pois o esposo está conosco todos os dias, até a consumação dos séculos).

Diante destes fatos, concluímos que o jejum não pertence a esta Dispensação em que vivemos. No seu sentido original (o ato de abster-se de alimentos como um exercício religioso; isto é, como uma forma de agradar a Deus), ele não tem nenhum valor nesta Dispensação, e os cristãos desta época da Igreja não devem jejuar meramente como um exercício religioso.

Há, porém, outra forma de entender a palavra “jejum”: o ato de abster-se de alimentos (ou outras coisas lícitas e necessárias) por algum tempo, para não atrapalhar algum serviço espiritual. Creio que esta forma de jejum (se dermos à palavra este sentido secundário) não só é lícito, como é proveitoso. Duas vezes lemos que o Senhor Jesus e Seus discípulos estavam tão ocupados ajudando os outros que “não tinham tempo para comer” (Mc 3:20 e 6:31). A expressão “orando com jejuns” em Atos 14 também indica isto, e sugere algo que muitos cristãos fazem regularmente: abrir mão de alimento (ou descanso, ou outra coisa necessária) porque há serviço para o Mestre que precisa ser feito urgentemente. Quantas irmãos e irmãs (principalmente nestes dias corridos em que vivemos) já abriram mão do jantar para poderem ir à reunião depois do trabalho num dia de semana; ou usaram a hora do almoço para visitar um enfermo, distribuir folhetos, ou conversar com um colega de escola ou trabalho que está interessado no Evangelho. Quantos irmãos e irmãs se entregam de tal forma à oração, que não tem tempo para comer (como o Senhor em Marcos caps. 3 e 6).

Se chamarmos esta entrega de “jejum”, certamente é algo do qual precisamos mais. Mas creio que o Novo Testamento deixa bem claro que o jejum, como mero exercício religioso, não tem valor nesta Dispensação.

Em terminar, preciso reconhecer que há irmãos piedosos e tementes a Deus que creem que o cristão deve jejuar ainda hoje. Fazem isto sinceramente diante do Senhor, e seguindo as orientações dadas no Sermão da Montanha (lavando o rosto para não parecer aos homens que jejuam — Mt 6:16-18). Respeito a convicção deles e não os julgo, mesmo ao repartir minha convicção neste pequeno artigo.

P.S. (19 Fev 2014). Acrescento abaixo um parágrafo sobre este assunto, extraído do Comentário Ritchie sobre o livro de Zacarias. O autor destas palavras é o irmão John Stubbs:

Sobre o assunto de jejuns, talvez seria bom considerar a pergunta se os cristãos hoje devem jejuar. Em primeiro lugar, não há ensino no Novo Testamento exigindo que os salvos jejuem, individual ou coletivamente. Isso não quer dizer que um salvo não possa jejuar. Eles jejuaram na igreja em Antioquia (At 13:3). Pode haver tempos quando o cristão considera conveniente disciplinar-se desta maneira para que possa ser mais devotado ao Senhor, em algum exercício espiritual. Abster-se de comer, ou de outras coisas legítimas, pode ajudar um cristão, mas não necessariamente outro. Se um cristão jejua, seria errado exigir que outros também jejuem. O Senhor Jesus ensinou que se o jejum for observado, deve ser feito sem nenhuma ostentação (Mt 6:16-18). Um ponto importante que devemos lembrar é que, quer seja nacional, na igreja, ou pessoal, o jejum em si mesmo não tem virtude alguma.

© W. J. Watterson