domingo, 30 de setembro de 2018

Cronologia da morte e ressurreição do Senhor

Observação: Apêndice de um estudo detalhado sobre as Sete Solenidades de Levítico cap. 23. As considerações abaixo só farão sentido se lembrarmos que o “dia” judaico começa com o pôr-do-sol. Assim o dia 14 de Nisan (dia da Páscoa) termina quando o Sol se põe (18h00 mais ou menos), e aquela noite já é considerada o dia 15.


Se tivéssemos apenas os evangelhos sinópticos, entenderíamos que quando a Ceia do Senhor foi instituída o Senhor Jesus participava da ceia da Páscoa com Seus discípulos, na mesma noite em que todos os judeus estariam celebrando esta festa. O cordeiro da Páscoa teria sido morto na tarde do dia 14, e naquela noite, 15 de Nisan, era celebrada a ceia da Páscoa; o Senhor seria crucificado na tarde do dia 15.

Mas o evangelho de João deixa claro que na manhã seguinte à primeira Ceia (na manhã em que o Senhor foi crucificado) os judeus ainda não haviam comido a Páscoa (Jo 18:28) — pela cronologia de João, o Senhor teria sido crucificado na tarde do dia 14, e a Ceia do Senhor teria sido instituída na noite anterior, 14 de Nisan. Como entender isto?

Antes de pensar nos detalhes desta questão, talvez seria bom enfatizar duas coisas:

  • Não creio, de forma alguma, que um dos lados (nem João, nem os três sinópticos) esteja enganado. Entendo que há uma aparente contradição, mas creio que é apenas aparente — principalmente porque creio na inspiração plena e absoluta da Palavra de Deus. Além do que, como diz Brown [BROWN, David. Comentário conhecido como JFB, vol. V, pág. 324], a concordância entre os três primeiros evangelistas é muito clara para supor que houve algum equívoco, e o fato de João escrever bem depois deles, quando os outros três evangelhos já eram largamente circulados, e escrever em plena harmonia com eles, não combina com a sugestão que João se preocupou em corrigir algum suposto erro deles. Analiso o assunto sob a pré-suposição de que os quatro evangelhos estão corretos, e podem ser harmonizados.
  • Não vou entrar em todos os detalhes deste assunto neste estudo, nem tenho pretensão de resolver a questão — páginas e páginas já foram escritas, por pessoas bem mais eruditas e capacitadas do que eu, e ainda não há consenso entre os estudantes da Bíblia quanto a este assunto. Apensa apresento os argumentos que parecem ser mais convincentes para mim — cada um deve procurar compreender este assunto à luz das Escrituras. O mais importante é ter certeza que Cristo morreu para cumprir a Páscoa, e ressurgiu para cumprir Primícias. Os deta-lhes cronológicos, e seu significado, serão compreendidos plenamente quando estivermos com Ele, e qualquer dificuldade que temos com estes detalhes hoje não nos impede de apreciar as verdades espirituais por trás deles.

Isto posto, temos três opções quanto tentamos harmonizar o relato dos quatro evangelhos:

  • A Ceia foi instituída durante uma refeição comum nas primeiras horas do 14º dia, cerca de 24 horas antes dos judeus comerem a ceia da Páscoa (isto implica em o Senhor ter sido crucificado no dia 14, e as afirmações dos três sinópticos devem ser interpretadas à luz de João);
  • A Ceia foi instituída enquanto o Senhor e Seus discípulos celebravam a ceia da Páscoa nas primeiras horas do 14º dia, cerca de 24 horas antes dos judeus comerem a ceia da Páscoa “oficial” (isto é, o Senhor e os discípulos celebraram a ceia da Páscoa antes dos judeus). Há evidências histórias confirmando que diferentes calendários eram observados por diferentes grupos dentro do judaísmo naqueles dias, e alguns sugerem que o Senhor teria seguido um calendário usado na Galileia, e celebrado a Páscoa um dia antes dos judeus a celebrarem (Bejon cita várias fontes para pesquisa sobre este assunto: Lichtenstein 1895:24-29, Strack & Billerbeck 1922-28:847-853, Zeitlin 1945-46:403-414, etc.);
  • A Ceia foi instituída durante a celebração tradicional da ceia da Páscoa, nas primeiras horas do 15º dia — o cordeiro teria sido morto na tarde do dia 14, e a ceia da Páscoa seria ao entardecer (sendo assim, o Senhor foi crucificado no dia 15, e as afirmações em João devem ser interpretadas à luz dos sinópticos).

Repare que a terceira alternativa coloca a morte do Senhor no dia 15 de Nisan, enquanto que as duas primeiras indicam que Sua morte foi no dia 14. Minha convicção pessoal é que a primeira sugestão é a mais provável, a segunda é possível, e a terceira é altamente improvável (isto é, creio que a Ceia foi instituída nas primeiras horas do 14º dia, e que meu Senhor foi crucificado durante este mesmo dia).

Minhas razões para isto, em ordem de importância, são:

  • A harmonia tão perfeita com o VT que resulta de aceitarmos que o Senhor foi crucificado na tarde do 14º dia, exatamente na hora em que os cordeiros da Páscoa estariam sendo sacrificados no Templo. A figura do VT combina de forma tão perfeita com a morte do Senhor Jesus que me parece inacreditável que Ele tenha morrido vinte e quatro horas depois da morte do cordeiro pascal (ainda mais levando-se em conta que a Sua ressurreição e a descida do Espírito Santo combinaram tão perfeitamente com as datas de Primícias e Pentecostes, respectivamente).
  • Se aceitarmos a última sugestão (que Ele foi morto durante o 15º dia) teremos muita dificuldade para explicar a atividade dos judeus durante a prisão e morte do Senhor. Como reunir tanta gente na casa do sumo-sacerdote na noite em que deveriam estar em casa comendo o cordeiro pascal? Como os judeus teriam incentivado a morte do Senhor e dos dois malfeitores no primeiro dia dos Pães Asmos, um dia de “santa convocação” em que “nenhum trabalho servil” poderia ser feito (Lv 23:7)? Como José de Arimateia poderia ter achado algum co-mércio aberto para comprar o linho fino para sepultar o Senhor (Mc 15:46)?
  • Até os sinópticos (que a princípio parecem indicar que a Ceia e a Páscoa foram na mesma noite) incluem algumas afirmações que sugerem que o Senhor foi crucificado antes da ceia da Páscoa — por exemplo, se Pilatos tinha o costume de soltar um preso por ocasião da Páscoa, seria de se esperar que esse preso fosse solto em tempo de poder participar da ceia da Páscoa, o grande símbolo do livramento de Israel da prisão do Egito. Soltá-lo no dia seguinte, e fazer com que ele permanecesse preso durante aquela celebração, tiraria deste gesto político toda a importância simbólica que tinha.
  • Se a ceia da noite da traição foi a ceia pascal, é impressionante que nenhum dos evangelistas menciona o cordeiro da páscoa, nem outros elementos tão comuns àquela ceia (as ervas amargas, os rituais dos vários cálices, etc.).
  • Os escritos mais antigos dos cristãos concordam em afirmar que a Ceia do Senhor não foi instituída durante a ceia da Páscoa. Farrar (pág. 559) cita Apolinário, Clemente de Alexandria, Júlio Africano, Hipólito e Tertuliano como fontes, e confirma que a ideia contrária (que a Ceia do Senhor foi instituída durante a celebração da ceia da Páscoa) só aparece a partir de Crisóstomo (347-407 a.D.).
  • A literatura antiga secular e judaica também confirma que a morte do Senhor foi na tarde do 14º dia — Bejon cita o Evangelho de Pedro e o Talmude como fontes, e Farar cita Sanh. vi. 2., Salvador e Sepher Jesuah Hannotseri (pág. 559).

Se aceitamos que a morte do Senhor ocorreu na mesma hora em que os cordeiros pascais começavam a ser mortos no Templo, a harmonia do cumprimento desta solenidade antiga é impressionante, e a narrativa de João combina perfeitamente com isto.

Mas algumas afirmações dos sinópticos não combinam com essa sequência de eventos. O que fazer então? Creio que a única solução é reconhecer que a interpretação prima facie — aquilo que parece ser verdadeiro à primeira vista — está errada, e tentarmos interpretar as afirmações dos sinópticos dentro desta sequência cronológica. Visto que o relato deles é muito resumido, e não sabemos todos os detalhes, talvez seja difícil explicar todas as suas afirmações — mas creio que é possível entender as afirmações deles sobre a Ceia e sobre a Páscoa de forma a combinar com o relato de João.

Como exemplo do que proponho, olhe para o texto de Lucas 22:7-18 (o texto mais complicado dos três sinópticos nesta questão). À primeira vista, não resta dúvida, pelo seu relato, que a Ceia foi instituída durante a celebração da Páscoa. Mas devemos lembrar que Lucas não apresenta os fatos no seu evangelho de forma estritamente cronológica (um dos exemplos mais claros disto está em Lucas 3:19-22 — ele menciona a prisão de João Batista antes do batismo do Senhor Jesus, invertendo a sequência normal dos eventos). Será que o mesmo não pode ter acontecido aqui? Apresento abaixo uma narrativa que incorpora o texto bíblico, e que acrescenta outros detalhes (em letras vermelhas). O resultado final é uma harmonia perfeita com o relato de João. Antes de ler esta sugestão, porém, permita-me enfatizar que é apenas uma sugestão de como poderíamos resolver o problema, se soubéssemos de todos os detalhes. Não estou afirmando que aconteceu assim, mas apenas apresen-tando uma possível solução para uma aparente contradição. A solução talvez seja outra. Com esta ressalva em mente, considere o texto abaixo:

Entrou, porém, Satanás em Judas, que tinha por sobrenome Iscariotes, o qual era do número dos doze. E foi, e falou com os principais dos sacerdotes, e com os capitães, de como lho entregaria; os quais se alegraram, e convieram em lhe dar dinheiro. E ele concordou; e buscava oportunidade para lho entregar sem alvoroço. 
Chegou, porém, o dia dos ázimos, em que importava sacrificar a páscoa, e ainda Judas não encontrara uma oportunidade para entrega-lO. No dia antes da festa, o Senhor mandou a Pedro e a João, dizendo: “Ide, preparai-nos todas as coisas que precisamos para a páscoa, que começa amanhã e se estende pelos próximos oito dias — isto é, a Páscoa e os Pães Asmos. Preparem tudo que precisaremos para que a comamos”. 
E eles lhe perguntaram: “Onde queres que a preparemos?” 
E Ele lhes disse: “Eis que, quando entrardes na cidade, encontrareis um homem, levando um cântaro de água; segui-o até à casa em que ele entrar. E direis ao pai de família da casa: O Mestre te diz: Onde está o aposento em que hei de comer a páscoa com os Meus discípulos? Então ele vos mostrará um grande cenáculo mobilado; aí fazei preparativos.” 
E, indo eles, acharam como lhes havia sido dito; e prepararam tudo para a páscoa, que seria celebrada no dia seguinte. Depois avisaram ao Senhor que tudo já estava pronto, e o Senhor combinou que reuniriam ali já naquela noite, pois Ele tinha algumas coisas a lhes dizer. 
E, chegada a hora, pôs-Se à mesa, e com Ele os doze apóstolos. E disse-lhes: “Desejei muito comer convosco esta páscoa, antes que padeça; porque vos digo que não a comerei mais até que ela se cumpra no reino de Deus.” 
Os discípulos não entenderam, e Pedro perguntou: “Senhor, como assim? O Senhor não vai comer está Páscoa conosco amanhã?” 
Ele respondeu: “Não. Já participamos juntos da Páscoa em outras ocasiões, e Eu desejei muito comer convosco ainda esta Páscoa — mas Eu vou padecer, e ser oferecido para cumprir a Páscoa, e só comerei dela novamente no Milênio.” Em seguida Ele tomou uma toalha, cingiu-Se, e lavou os pés dos discípulos. 
E, tomando o cálice, e havendo dado graças, disse: “Tomai-o, e reparti-o entre vós; porque vos digo que já não beberei do fruto da vide, até que venha o reino de Deus.” E, tomando o pão, e havendo dado graças, partiu-o, e deu-lho, dizendo: “Isto é o Meu corpo, que por vós é dado; fazei isto em memória de Mim”. Semelhantemente, tomou o cálice, depois da ceia, dizendo: “Este cálice é o novo testamento no Meu sangue, que é derramado por vós.”
Tudo isto são apenas tentativas de resolver uma dificuldade que é real. Creio, porém, que se soubéssemos todos os detalhes da tradição dos judeus sobre a Páscoa, e do que aconteceu naqueles dias, tudo se encaixaria perfeitamente. Por hora, temos que tentar entender os fatos com as informações que temos, e creio que o que melhor satisfaz todas as informações disponíveis é o que tenho defendido neste estudo: que o Senhor foi crucificado na sexta-feira quando os cordeiros pascais estavam sendo mortos, e ressuscitou no domingo bem cedo, quando o dia das Primícias era celebrado.

© W. J. Watterson

BEJON, James. A Chronology of Jesus’ Ministry. Disponível online em acedemia.edu.
FARRAR, Frederic W. The life of Christ. Versão em PDF preparada por Cumorah Foundation, 2008 (cumorah.com).

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