sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Crianças e reuniões combinam?

Como fiz exatamente um mês atrás, quero abordar um assunto prático relacionado às reuniões das igrejas. Mas desta vez procurarei escrever sem o leve tom de brincadeira que usei da última vez, por pelo menos dois motivos:

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

A galeria dos heróis da fé

A maioria dos leitores deste blog conhece bem a lista dos homens e mulheres de fé, em Hebreus 11. Mas muitos não percebem que a lista não é simplesmente uma coleção aleatória de nomes, mas uma exposição perfeitamente equilibrada e simétrica de atos de fé.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Tempestade em copo d'água

Poucos dias atrás, numa conferência com cerca de duzentas e cinquenta pessoas, fiquei assustado e preocupado com algo que parece tão simples e inofensivo: água!

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Acróstico (i)

Da série “Figuras de linguagem na Bíblia”. Leia também:


A palavra “acróstico” pode ser definida como “composição poética em que cada verso principia por uma das letras da palavra que lhe serve de tema.” Uma forma específica de acróstico é o acróstico alfabético, em que cada verso inicia com uma das letras do alfabeto, na ordem alfabética.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Figuras das igrejas locais no Éden


O jardim do Éden, onde Adão e Eva habitavam antes do seu pecado, era o paraíso de Deus aqui na Terra. Um local perfeito, onde o homem podia viver em comunhão, também perfeita, com seu Deus. Uma igreja local é, da mesma forma, o local onde Deus hoje procura ter comunhão com Seus filhos, coletivamente. O NT descreve uma igreja local como sendo um santuário onde a santidade de Deus pode ser apreciada (I Co 3:16–17), a casa onde o Altíssimo pode habitar com Seu povo (I Tm 3:14–15), a congregação onde o Senhor pode governar (Mt 18:20). Podemos dizer que uma igreja local é um paraíso aqui na Terra, um oásis no meio deste deserto em que vivemos. Nada mais coerente, portanto, do que procurar semelhanças entre estes dois “paraísos”, entre o local onde Deus teve, pela primeira vez, comunhão com o homem, e o local onde, hoje, Ele procura tal comunhão.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

A ignorância dos sábios

Nem toda ignorância é resultado de falta de inteligência. Isaías, no cap. 29 da sua profecia, fala de pessoas que ignoram o conteúdo de uma profecia porque ela foi selada, enquanto outros a ignoram porque não sabem ler:

Por isso toda a visão vos é como as palavras de um livro selado que se dá ao que sabe ler, dizendo: “Lê isto, peço-te”; e ele dirá: “Não posso, porque está selado”. Ou dá-se o livro ao que não sabe ler, dizendo: “Lê isto, peço-te”; e ele dirá: “Não sei ler”.

E a culpa de tudo isto? Ouça Isaías novamente:

Pois que este povo se aproxima de Mim, e com a sua boca e com os seus lábios Me honra, mas o seu coração se afasta para longe de Mim, e o seu temor para comigo consiste só em mandamentos de homens, em que foi instruído.

Vemos isto ao nosso redor todos os dias. Pessoas inteligentes, estudiosas e instruídas, que andam tateando no escuro, sem saber aonde vão! Como são verdadeiras as palavras do profeta quanto aos sábios deste século:

Ai dos que querem esconder profundamente o seu propósito do Senhor, e fazem as suas obras às escuras, e dizem: “Quem nos vê? E quem nos conhece?” Vós tudo perverteis, como se o oleiro fosse igual ao barro, e a obra dissesse do seu artífice: “Não me fez”; e o vaso formado dissesse do seu oleiro: “Nada sabe”.

“Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos” (Rm 1:22). Seria cômico se não fosse trágico; seria engraçado, se não estivesse tão próximo de nós (nos professores dos nossos filhos, nos líderes da nossa política, etc.). Seria assustador, se não tivéssemos sido avisados.

Oremos pela preservação das nossas famílias e das igrejas do Senhor nestes dias de tanto estudo e tanta ignorância.

© W. J. Watterson

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Correção de Pai para filho

“Feriu-o como feriu aos que o feriram? Ou matou-o, assim como matou aos que foram mortos por Ele?” (Is 27:7).

Este versículo em Isaías parece, à primeira vista, um pouco difícil de entender. Quem feriu quem? Mas quando percebemos a mensagem do versículo, vemos mais uma confirmação do cuidado terno do Pai para conosco, mesmo quando Ele nos corrige.

Poderíamos traduzir o versículo assim: “Será que o Senhor feriu Israel da mesma forma que feriu os ímpios que feriram Israel? Será que Ele matou Israel, assim como fez com os ímpios que Ele matou?” A resposta, ímplicita na pergunta, é: “Não!” O Senhor está lembrando Seu povo que seria necessário castigá-los pela sua rebeldia, mas que Ele estaria agindo como um pai ao corrigir um filho, e não como um juiz ao condenar um réu. Como cantamos: “É por amor que nos castiga; mui perto está, e a dor mitiga; Deus é fiel” (Sarah Poulton Kalley, H. e C. nº 206).

Há muitos outros versículos que confirmam esta verdade: “Porquanto darei fim a todas as nações entre as quais te espalhei; a ti, porém, não darei fim, mas castigar-te-ei com medida” (Jr 30:11); “O Senhor me castigou muito, mas não me entregou à morte” (Sl 118:18); “Quando somos julgados, somos repreendidos pelo Senhor, para não sermos condenados com o mundo” (I Co 11:32).

Portanto, que possamos receber a correção do Senhor humildemente, pois Ele nos corrige com amor, e por amor (Hb 12:5-7).

© W. J. Watterson

terça-feira, 16 de setembro de 2014

O maná e a vida de Cristo

Muito já foi escrito acerca das diversas lições que o maná nos ensina sobre Cristo. Nesta pequena meditação quero destacar a maneira como o maná foi chamado na Bíblia (seja pelos homens, seja por Deus). Temos sete nomes diferentes para descrever o maná:

  1. Pão dos Céus (Êx 16:4);
  2. Maná (Êx 16:15);
  3. Pão vil (Nm 21:5);
  4. Trigo do Céu (Sl 78:24);
  5. Pão dos anjos (Sl 78:25);
  6. Comida espiritual (I Co 10:3);
  7. Maná escondido (Ap 2:17).

O mais impressionante desta lista é perceber como estes títulos, na ordem em que aparecem nas Escrituras, apresentam um resumo cronológico do relacionamento de Cristo com os homens. Os primeiros quatro descrevem Sua trajetória dos Céus até o Calvário, e os últimos três resumem Seu ministério presente. Como são perfeitas as Escrituras! Quando Deus inspirou Moisés a escrever Êxodo cap. 16, Ele já tinha em vista o texto de Apocalipse 2, e distribuiu estes sete títulos pela Sua Palavra desta forma tão perfeita.

Sem tomar muito espaço para desenvolver este assunto, repare resumidamente os paralelos entre a lista de sete títulos acima e a vida do Senhor Jesus.

O primeiro título, Pão dos Céus, lembra-nos que Cristo veio dos Céus para habitar entre nós. Para muitos Ele era de Nazaré; alguns poderiam afirmar que Ele viera de Belém; na realidade, Ele veio do Céu.

O segundo título (“maná”) indica espanto e surpresa. A exclamação dos judeus quando viram o maná pela primeira vez (“Que é isto?”, Êx 16:15) é, no hebraico, “Maná?” Surpresos ao ver algo totalmente diferente, eles disseram: “Maná?”, ou, em português: “Que é isto?”, e esta expressão acabou se tornando o nome mais conhecido deste alimento. O espanto dos judeus é, até certo ponto, normal (afinal, nunca antes alguém vira maná), mas é também, injustificável (pois Deus havia avisado no dia anterior que lhes daria pão do Céu). A verdade é que, por esquecimento, ou por desprezo, ficaram espantados quando viram o maná.

É exatamente isto que aconteceu com o Senhor quando Ele veio ao mundo. Apesar da Sua vinda ter sido amplamente profetizada, e do povo de Israel aguardar ansiosamente a vinda do Messias, quando Ele finalmente veio, ficaram espantados. Os principais dos judeus admiraram a Sua inteligência e respostas quando Ele tinha doze anos (Lc 2:47). Os habitantes de Nazaré, que conviveram com Ele durante toda a Sua infância e juventude, quando O ouviram pregar pela primeira vez “se maravilhavam … e diziam: Não é este o Filho de José?” (Lc 4:22). A maneira como Ele nasceu e viveu, a maneira como Se comportou, a maneira como pregava, as pessoas com quem andava, tudo foi motivo de espanto para aqueles que deveriam estar preparados para recebê-lO.

Quando passamos para o terceiro título (“Pão vil”) somos lembrados que os homens rapidamente passaram do espanto para o ódio, e clamaram pedindo a Sua crucificação.

O quarto título, porém, nos lembra que aquele que os homens odiaram e crucificaram produziu muito fruto para Deus pela Sua ressurreição. Quando Deus chama o maná de “trigo dos Céus”, a substituição da palavra “pão” pela palavra “trigo” muda a ênfase do alimento, não mais enfatizando o sustento que ele traz, mas sim o fruto que ele produz (o trigo é muitas vezes usado nas Escrituras como símbolo de fruto; veja Jo 12:24).

O quinto título (“pão dos anjos”) nos lembra que hoje Ele está rodeado dos anjos, sendo adorado na glória celeste, enquanto que o sexto (“alimento espiritual”) lembra-nos da nossa necessidade de alimentar-nos dEle enquanto atravessamos o deserto em que estamos hoje.

E, por fim, o próprio Senhor fala do “maná escondido”. Em Êx 16:32-34 encontramos a ordem do Senhor para guardar um ômer de maná perante o Senhor, e este ômer de maná foi escondido dentro da arca da aliança (Hb 9) no Santo dos Santos. Tudo no Tabernáculo fala de Cristo; as coisas “escondidas”, porém, aquelas que ficam além do véu, sem dúvida falam daquilo que Cristo representa para o Pai, das belezas e glórias dEle que estão ocultas ao olho humano. Creio que o Senhor está dizendo que o vencedor poderá apreciar belezas da glória de Cristo que apenas o Pai conhece. Quão grande seria este privilégio! Não apenas conhecê-lO como Seus santos O conhecem, mas conhecê-lO como o Pai O conhece! Lembrando que I Co 2:9-10 nos fala de coisas inescrutáveis para o homem natural, mas que são reveladas hoje aos que O amam, podemos crer que este privilégio pode ser nosso hoje!

Assim, os sete títulos falam de como Cristo encarnou-Se (“pão dos Céus”), foi recebido com espanto (“maná — que é isto?”) e ódio (“pão vil”), mas pela Sua morte e ressurreição produziu muito fruto para Deus (“trigo do Céu”). Elevado à glória celeste, Ele hoje é o “pão dos anjos” quanto ao Céu, e o “alimento espiritual” para Seu povo aqui na Terra. Como seria bom se também estivéssemos nos alimentando do maná escondido, que tanto agrada ao coração do Pai!

Levantemos cedo de nossas camas, então, ansiosos por colher o Maná diário do qual tanto precisamos!

© W. J. Watterson

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Os sete candeeiros de ouro

Autor desconhecido (favor informar se souber)
Na visão maravilhosa que João teve do Senhor Jesus na ilha de Patmos (Apocalipse cap. 1), a primeira coisa que ele descreve são os sete candeeiros. Não que eles fossem aquilo que mais se destacava na visão — pelo relato de João, fica claro que o Senhor, em toda a Sua glória, foi quem prendeu a atenção do apóstolo. Mas quando João vira, ele vê primeiro “sete castiçais de ouro”.

Por quê? Se lembramos que os candeeiros são figuras das sete igrejas (que, por sua vez, são representativas de todas as igrejas locais desta dispensação), então percebemos como é destacada a importância do testemunho de uma igreja local. Os candeeiros só estavam ali porque o Senhor estava ali, e só chamaram a atenção de João momentaneamente; mas foram mencionados primeiro. Não era possível olhar para os candeeiros e não ver o Senhor, e não era possível olhar para o Senhor sem que seu olhar passasse pelos candeeiros. Da mesma forma, sabemos que uma igreja local só existe enquanto o Senhor está ali, e toda a importância e glória da igreja está nEle; mas a igreja tem uma importância enorme, pois ela é um dos meios pelos quais Cristo pode ser conhecido do pecador hoje em dia; ela é um testemunho dEle.

Repare que eram sete candeeiros, não um candelabro com sete lâmpadas como no Tabernáculo. O candelabro destacava a união do povo de Israel, mas estas sete peças individuais, separadas, destacam a autonomia de cada igreja local. Não estão ligadas uma à outra; o único elo que unia estes candeeiros era o Senhor no meio.

Eram sete candeeiros (a melhor tradução da palavra grega luchnia), isto é, um suporte para lâmpadas que consomem óleo, e não velas. A figura é importante. As igrejas não são apresentadas sob a figura de velas (isto é, algo que produz luz enquanto consome-se a si mesmo), mas sim como lâmpadas ou lamparinas (isto é, algo que produz luz ao queimar óleo). Assim é destacada a importância do óleo, que nas Escrituras é uma figura do Espírito Santo. As igrejas só podem iluminar através da operação do Espírito Santo.

Eram sete candeeiros de ouro! O ouro fala-nos de algo precioso e puro, assim como uma igreja local é preciosa aos olhos de Deus. Pode ser (e muitas vezes é) desprezada pelo mundo, e até por muitos cristãos, mas é preciosa ao Senhor. No passado Deus podia dizer de Israel: “Aquele que tocar em vós toca na menina do Seu olho” (Zc 2:8). Hoje, o mesmo Deus afirma, falando duma igreja local: “Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá; porque o santuário de Deus, que sois vós, é sagrado” (I Co 3:17).

Esta visão dos sete candeeiros de ouro, portanto, nos fala sobre:

  • O alvo das igrejas — direcionar as atenções para Cristo;
  • A autonomia das igrejas — decorrente da autoridade de Cristo;
  • A atuação das igrejas — depende da ação do Espírito Santo;
  • A avaliação das igrejas — destacando a apreciação de Deus.

Que privilégio fazer parte de uma igreja local, separada dos sistemas e organizações do Cristianismo professo.

© W. J. Watterson

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Alguém orou [poema]

"Eastman Johnson, Child at Prayer, circa 1873" by Eastman Johnson


Escrito em 1996, livremente baseado num poema em inglês de F. M. Nesbit (leia o original).

Alguém orou

Das garras vis do tentador
Meu Deus salvou um pecador.
“Por quê?”, alguém pensou;
Porque alguém orou…

A fraca ovelha, sem vigor,
Foi restaurada com amor;
“Por quê?”, alguém pensou;
Porque alguém orou…

Olhando o fruto, o semeador
Agradeceu ao seu Senhor.
“Por quê?”, talvez pensou;
Porque alguém orou…

© W. J. Watterson

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Preso (ainda) [poema]

Mais um poema antigo (este de Abril de 1995), e que também trata da terrível luta contra a carne. Prometo que na semana que vem posto algo mais animador e alegre. Creio que há proveito em reconhecer nossas fraquezas, e sem dúvida há uma beleza especial que nasce da tristeza. Como escreveu I. Y. Ewan: “There is a joy that lies where pearls lie, deep,/Too deep for those who have no heart to weep” (que quer dizer, mais ou menos: “Há uma alegria que se esconde com as pérolas no fundo do mar,/Fundo demais para quem nunca aprendeu a chorar”). Mas não convém ficar ocupado demais com estas coisas (“wallowing in the Slough of Despond”); é melhor, como disse Jeremias, “trazer à memória o que me pode dar esperança” (Lm 3:21).


Preso (ainda)

Quantas vezes tropecei!
Eu quis lutar (ah, como tentei!)
Mas cada vez que levantei,
     A carne ainda me seguia…

Um passo, dois, às vezes três,
E o ataque vinha outra vez;
Um golpe seco, de uma vez,
     E a carne ainda me vencia…

Com prepotência eu dizia:
“Chega! Agora nasce outro dia,
E eu irei vencer!” Eu ria,
     Mas a carne ainda me iludia…


Na Tua casa, meu Senhor,
(E só ali) serei um vencedor;
Terei pra sempre o Teu amor,
     E a carne nunca mais verei!

Só resta, agora, esperar…
E enquanto o dia não raiar,
Me ajude, ó Pai, a Te agradar;
     Pois a carne ainda me perturba…

© W. J. Watterson

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Miserável homem que sou [poema]

Outro poema antigo (Fevereiro de 1995), baseado em Romanos 7:24-25. Como poema não é grande coisa, e a pobreza da rima chega a ser constrangedora em alguns versos (“entrega” e “trégua”, por exemplo). Decidi publicá-lo mesmo assim, com a expectativa de incentivar algum cristão na sua luta contra a carne. Quantas vezes desanimamos ao perceber a força e insistência da velha natureza, com seu ódio, sua preguiça, sua imoralidade. Quão preciosas as palavras com que Paulo encerra este capítulo: “Graças a Deus por Jesus Cristo nosso Senhor”.

Miserável homem que sou

Como eu queria ser perfeito!
Subir aos ares sem defeito,
Beijar as nuvens com a calma
Que só tem a pura alma!

Como eu queria Te agradar!
Mostrar que já consigo amar
Os que me odeiam, e servir
A todos, sem nada exigir!

Como eu queria…

Mas a carne não se entrega,
Não desiste nem dá trégua
Nesta luta angustiante,
Sem descanso, constante.

Eu clamo, então: “Quem me livrará?
A minha carne, quem a pisará?”
As trevas fogem; eis a luz:
“Graças a Deus por Cristo Jesus!”

© W. J. Watterson

terça-feira, 29 de julho de 2014

Maior tristeza, melhor provisão

Um pequeno detalhe na vida de Elias ilustra a misericórdia de Deus. “Assim como um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor Se compadece daqueles que O temem. Pois Ele conhece a nossa estrutura; lembra-Se de que somos pó” (Sl 103:13-14).

Em três situações distintas Elias recebeu alimento da parte de Deus de forma milagrosa. Comparando estas três situações na sua ordem cronológica, vemos que, à medida que o ânimo de Elias diminuía e sua tristeza aumentava, a provisão de Deus se tornava mais especial e preciosa:

  • Logo no começo do seu ministério, cheio de coragem e vigor, Elias foi alimentado por corvos (I Rs 17:4);
  • Quando o ribeiro Querite secou e Elias começou a sentir os efeitos da sua fidelidade a Deus, Deus o alimentou através de uma viúva (I Rs 17:9);
  • Quando ele fugiu para o deserto e pediu que Deus tirasse a sua vida, Deus o alimentou através de um anjo (I Rs 19:5-7 — possivelmente o próprio Senhor; veja a expressão “Anjo do Senhor” no v. 7). 

Ser alimentado por corvos era algo impressionante e milagroso; mas corvos eram animais imundos para o povo de Israel. Ser alimentado por uma mulher era algo muito mais confortante (mesmo sendo um mulher viúva, pobre, sem recursos). Mas nada poderia se comparar ao privilégio de ser alimentado por um anjo de Deus. E Deus reservou este privilégio para a hora de maior fraqueza do Seu servo.

Podemos confiar na fidelidade de Deus, que sempre cuidará de nós em qualquer circunstância. E podemos nos alegrar na misericórdia de Deus, que reserva as mais sublimes bênçãos para os momentos de maior provação e dificuldade.

© W. J. Watterson

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Trevas e Luz [poema]

Eu vejo num abismo profundo
Um pobre enigma entristecido;
E preso, bem lá no fundo,
Gemidos de um sonho esquecido…

Eu vejo num abismo profundo
(Sem forma, sem cor, sem cheiro)
Uma centelha de outro mundo,
Um lampejo verdadeiro.

Eu vejo um abismo profundo
Perder-se de vista ante o meu Deus;
E vejo um pobre, fraco, e imundo
Achar descanso nos braços Seus.

Escrito em 23/12/94

© W. J. Watterson

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Não julgues [poema]

Não critiques o homem que tropeça,
Que vai mancando, arqueado,
A não ser que conheças as suas dores
Ou já tenhas carregado o seu fardo.
Pode ser que haja calos em seus pés
Que ele não mostrou a ninguém;
Ou (quem sabe!) o seu fardo em tuas costas
Não te faria tropeçar também?

Não zombes do homem que está caído
A não ser que o mesmo golpe te atingiu,
Ou que conheças a humilhação
Que só conhece quem já caiu.
Talvez sejas forte, mas … quem sabe,
Se o inimigo viesse te atacar
Da mesma forma, nas mesmas circunstâncias …
Tais golpes não poderiam te derrubar?

Não apedrejes o homem que pecou
Como se fosses incapaz de errar,
A não ser que tenhas total certeza
De seres perfeito em teu andar.
Se o tentador viesse sussurrando,
Como fez com teu irmão,
Será que tu (às vezes descuidado!)
Não cairias nesta mesma transgressão?

(Escrito em Setembro de 1994, baseado num poema em inglês.)

© W. J. Watterson

domingo, 13 de julho de 2014

Por quê? [poema]

Há meses que choro, sem dor,
Abraçando um ermo sombrio;
Meus olhos suplicam por calor,
Mas meu sonho está tão frio…

Olhando de longe, eu vejo
Minha vida se quebrando.
As vezes, num breve lampejo,
Um sonho mártir sai vibrando,
Gritando que encontrou a paz;
Mas meus temores, qual vil açoite,
Gritam mais, que não há paz,
E eu me rendo à dor da noite…

E longe (bem longe) alguém me observa,
Confuso, sem saber o que dizer.
Um lindo anjo, puro, observa,
Mas não consegue entender.
“Senhor”, ele diz, “por que não confiam
No Teu amor, na Tua graça e paz?
Por que lutam, sofrem, se afadigam,
Se são ovelhas do Deus da Paz?”

O Deus da Paz não respondeu,
Mas pela Sua face santa uma lágrima escorreu…

(Escrito em Abril de 1994)

© W. J. Watterson

quinta-feira, 3 de julho de 2014

A grande comissão

Uma breve consideração sobre a comissão do Senhor Jesus Cristo, registrada em dois dos Evangelhos. Baseada em uma pregação numa conferência alguns anos atrás.

Leitura: Mateus 28:18-20 e Marcos 16:15-20

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Zeugma

Da série “Figuras de linguagem na Bíblia”. Leia também:



A palavra grega zeugma quer dizer “jugo” (uma peça de madeira que une dois animais para que trabalhem juntos). Quando usada no campo da Retórica, duas definições divergentes são apresentadas:

  • A Wikipédia (em português) define zeugma como “figura de linguagem que consiste na omissão de um ou mais elementos de uma oração, já expressos anteriormente”. Muita ênfase é dada às palavras “já expressos anteriormente” (inclusive, este detalhe torna-se a diferença entre zeugma e elipse, segundo a Wikipédia). De acordo com esta definição, zeugma é simplesmente um tipo especial de elipse. Uma rápida pesquisa online revelará dezenas de sites de “ajuda a estudantes” em português que simplesmente repetem o que está no site da Wikipédia (a maioria, sem ao menos citar a fonte!).
  • Já a Wikipedia (em inglês) começa sua definição explicando que a palavra quer dizer “jugo”, e portanto define a figura como “uma única frase ou palavra unindo diferentes partes de uma frase”. A ênfase nesta definição não está na omissão de um ou mais elementos de uma frase, mas no fato de que, devido a esta omissão, um único elemento (um verbo, por exemplo) é ligado (como que por um jugo) a diferentes partes da frase.

Esta segunda definição é defendida por diversos autores (Bullinger, Harris — professor de inglês na Vanguard University) e dicionários (Oxford). Eles destacam a relação de dependência entre os elementos da frase que é criada pelo uso desta figura de linguagem, que combina com o significado original da palavra. É esta definição que apresento neste pequeno estudo.

Podemos distinguir pelo menos quatro tipos de zeugma usados na Bíblia. Veja abaixo uma definição resumida de cada um destes quatro tipos, com alguns exemplos.

Prozeugma (ou protozeugma)

Quando o elemento que serve de jugo se encontra no início da frase. Exemplo:

  • Lc 24:27 — “E começando por Moisés, e por todos os profetas, explicava-lhes o que dEle se achava em todas as Escrituras”. Gramaticalmente, “começando” só pode se aplicar a “Moisés”, que está no começo do Velho Testamento. O sentido implícito na frase é que Ele começou por Moisés, e depois continuou através dos profetas (a versão Atualizada acrescenta o verbo “discorrendo” em relação aos profetas). Realmente, porém, não há erro, e não é necessário acrescentar outro verbo. O sentido do que Lucas escreveu, inspirado pelo Espírito Santo, é claramente entendido, e a figura de linguagem chama a nossa atenção não para os verbos (“começando”, “discorrendo”), mas para os livros da Bíblia. A mensagem transmitida é que o Senhor poderia ter começado por qualquer livro do Velho Testamento, pois todos eles igualmente falam dEle. Em todos os profetas e em todas as Escrituras, o tema central sempre será o nosso amado Senhor Jesus Cristo.

Mesozeugma

Quando o elemento que serve de jugo se encontra no meio da frase. Exemplos:

  • Dt 4:12 — “… porém, além da voz, não vistes figura alguma”. A ordem das palavras no hebraico é: “figura nenhuma vistes a não ser a voz”. Parece errado, pois uma voz não se vê — se ouve! Parece que seria necessário acrescentar o verbo “ouvistes” — “figura nenhuma vistes, somente ouvistes a voz”. Na realidade, porém, temos aqui mais um exemplo da perfeição das Escrituras. Através da omissão do segundo verbo (“ouvir”), um único verbo (“ver”) governa a frase toda. Assim o fato de que nada foi visto é enfatizado, e o erro da idolatria (que está ligada com “imagens”, com aquilo que se vê) é claramente condenado.
  • Mc 13:26 — “Então verão vir o Filho do Homem nas nuvens, com grande poder e glória”. No grego, a ordem das palavras é: “… com poder grande e glória”, uma construção gramatical que, de acordo com Bullinger, é “peculiar”, fora do normal. Assim um único adjetivo (“grande”) é aplicado a dois substantivos (“poder” e “glória”) numa forma não-convencional, chamando nossa atenção para a grandeza do poder e a grandeza da glória da vinda do Senhor. Que dia maravilhoso será aquele!
  • I Co 3:2 — “Com leite vos criei, e não com carne”. O único verbo que rege os dois substantivos (“leite” e “carne”) quer dizer, literalmente, “dar de beber” (é traduzido “regar” nos vs. 6 e 7 deste mesmo capítulo), e aplica-se sempre a líquidos, não a sólidos. A tradução literal é: “Leite vos dei a beber, não carne”. A versão Trinitariana e a versão Corrigida tentam solucionar o aparente problema traduzindo “vos criei”, enquanto que a Atualizada acrescenta “vos dei” antes de “alimento sólido”. Mas não há erro — há, sim, uma figura de linguagem que confere beleza poética à frase, ao mesmo tempo em que destaca a diferença entre “leite” e “carne”. “Leite vos dei a beber, não carne” é muito mais belo, expressivo e enfático do que a forma rígida: “Leite vos dei a beber, não vos dei carne a comer”.

Hipozeugma

Quando o elemento que serve de jugo se encontra no final da frase. Exemplo:

  • At 4:28 — “… fazerem tudo o que a Tua mão e o Teu conselho tinham anteriormente determinado que se havia de fazer”. O verbo “determinar”, no final da frase, só se aplica ao conselho de Deus — o Seu conselho determinou, mas a Sua mão fez. A omissão do verbo “fazer” (ou “executar”) não é um erro — é uma figura de linguagem que destaca a harmonia tão perfeita que existe entre tudo que Deus planeja e tudo que Deus executa. Os homens podem planejar uma coisa, e depois executar outra (por falta de vontade de cumprir o plano original, ou por falta de capacidade); mas tudo aquilo que Deus determina, Ele cumpre. Em outras palavras: a mão e o conselho de Deus determinaram tudo, e a mão e o conselho de Deus fizeram tudo. Os dois (os planos e a execução destes planos) são inseparáveis.

Sinezeugma

Quando o elemento que serve de jugo se liga a mais de dois elementos. Exemplo:

  • Êx 20:18 — “E todo o povo viu os trovões e os relâmpagos, e o sonido da buzina, e o monte fumegando; e o povo, vendo isso …”. O único verbo usado (“ver”, no início e no final da frase) só poderia ser usado dos relâmpagos e do monte fumegando; os trovões e o sonido deveriam ser regidos pelo verbo “ouvir”. Porém se todos os verbos tivessem sido usados, a leitura seria muito menos expressiva. Da forma como está, temos um quadro impressionante com som (trovões e sonido de trombetas) e imagem (relâmpagos e monte fumegando) que impressionou o povo, e deveria nos impressionar até hoje, servindo a Deus “com reverência e piedade, porque o nosso Deus é um fogo consumidor” (Hb 12:28-29).

Conclusão

Que estes poucos exemplos extraídos da obra de Bullinger nos incentivem a pesquisar as Escrituras com mais cuidado e paciência, aproximando-nos da Bíblia com a convicção de que ela é perfeita em todos os seus detalhes. Quando encontramos algo que parece indicar uma relação desequilibrada entre os termos de uma frase, é bem provável que estamos diante de algum tipo de zeugma, e que há algum detalhe ali que o Espírito Santo quis enfatizar quando usou esta figura de linguagem.

Como pode um coração inteiro numa lágrima se expressar?
Por que uma pérola se esconde tão fundo no mar?
Senhor, ajude-me também Teu livro perscrutar!


© W. J. Watterson

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Assíndeto e Polissíndeto

Da série “Figuras de linguagem na Bíblia”. Se desejar, leia primeiro a Introdução a esta série de artigos.

Introdução

As duas figuras que servem de título para este artigo merecem ser consideradas juntas, pois uma complementa a outra. A primeira (assíndeto) pertence ao grupo de figuras elípticas (caracterizadas por omissão), e a segunda (polissíndeto) ao grupo das figuras pleonásticas (caracterizadas por acréscimo).

Entre as muitas ocorrências destas figuras na Bíblia, uma se destaca: nosso Senhor usou ambas numa mesma ocasião, poucos minutos uma da outra, e relacionadas ao mesmo grupo de quatro palavras, na mesma ordem.

Comecemos, porém, definindo as figuras e tentando entender seu significado (isto é, por que são usadas).

Definindo as figuras

O dicionário Priberam dá as seguintes definições:

  • Assíndeto: “Supressão das conjunções coordenativas entre frases ou entre partes da oração e da frase”;
  • Polissíndeto: “Repetição da mesma conjunção em frases ou constituintes seguidos”.

“Assíndeto” quer dizer, basicamente, “nenhuma conjunção” (“a” + “síndeto”), e “polissíndeto”, “muitas conjunções” (“poli” + “síndeto”).

Gramaticalmente, a forma normal de se apresentar uma lista de palavras é separá-las com vírgulas, usando a conjunção “e” somente antes da última palavra na lista. Por exemplo, na frase: “Três palavras que descrevem os tipos de figuras de linguagem são: omissão, acréscimo e alteração”, temos a forma normal de se escrever. Se usássemos a figura assíndeto, escreveríamos: “Três palavras que descrevem os tipos de figuras de linguagem são: omissão, acréscimo, alteração”, e com polissíndeto teríamos: “Três palavras que descrevem os tipos de figuras de linguagem são: omissão e acréscimo e alteração”.

Descrevendo suas finalidades

Não é difícil entender a diferença entre assíndeto e polissíndeto — mas qual a finalidade destas duas figuras de linguagem? Se pretendo desviar da norma padrão e usar um assíndeto ou polissíndeto, o que ganharei com isso?

Podemos resumir as três formas de se apresentar uma lista de palavras da seguinte forma:

  • A forma comum — Se queremos simplesmente apresentar os elementos que compõe uma lista, sem nenhum destaque ou ênfase especial, escrevemos como no primeiro exemplo dado na seção anterior (separando os elementos por vírgulas, e acrescentando a conjunção “e” antes do último elemento).
  • Assíndeto — Se queremos dar destaque ao quadro geral apresentado pela lista, mais do que aos elementos individuais que compõe a lista, omitimos as conjunções. Assim o leitor não tem sua atenção distraída pelas muitas conjunções, e caminha mais apressadamente para o final da lista, onde poderá haver uma conclusão que o autor deseja destacar mais do que os elementos individuais da lista.
  • Polissíndeto — Por outro lado, talvez o autor deseja destacar os elementos individuais que compõe a lista, mais do que o quadro geral. Neste caso, ele recorre ao polissíndeto. Ao encontrar a conjunção “e” repetida para cada palavra da lista, o leitor lê mais pausadamente, e dá mais atenção a cada uma das palavras individuais.

Resumindo: o assíndeto destaca a lista (o quadro geral), o polissíndeto destaca os elementos que compõe a lista.

É isto que dizem os gramáticos. Devo confessar que no meu dia-a-dia tal distinção é insignificante, e muitos que leem este pequeno artigo provavelmente estão na mesma situação que eu: falamos e escrevemos sem nos preocuparmos com estes pequenos detalhes. Mas os que entendem de gramática reconhecem a validade das figuras, e creio que o Espírito Santo, na perfeição da Sua sabedoria divina, teria também prestado atenção a este detalhe ao escrever a Bíblia. Se você encontrar um assíndeto ou polissíndeto neste blog, pode ser mera coincidência, ou pode ser que usei a figura num lugar inapropriado; mas encontrando uma destas figuras na Bíblia, você pode ter certeza de que ela está lá com um propósito específico, e que devemos prestar atenção à figura.

Destacando as figuras

Como mencionei acima, a Bíblia contém um exemplo impressionante de nosso Senhor usando estas duas figuras numa mesma ocasião. Em Lucas 14:1-24 o Senhor está na casa de um dos principais dos fariseus, e diz: “Chama os pobres, aleijados, mancos, cegos” (v. 13). Poucos versículos adiante, Ele diz: “Traze aqui os pobres e aleijados e mancos e cegos” (v. 21).

O parágrafo acima contém a tradução literal dos dois versículos — as versões em português, infelizmente, não preservam as figuras usadas no grego nestes versículos. No original, a lista do v. 13 não contém nenhuma conjunção, enquanto que a lista do v. 21 usa a conjunção entre todas as palavras da lista.

Repare bem esta diferença. Na mesma ocasião (na casa de um dos principais dos fariseus) o Senhor Jesus apresenta, duas vezes, uma lista contendo exatamente os mesmos quatro adjetivos (“pobres, aleijados, mancos, cegos”), e na mesma ordem. Na primeira vez, porém, Ele não usa nenhuma vez a conjunção “e” (assíndeto), enquanto que na segunda vez, Ele usa a conjunção entre todas as palavras (polissíndeto).

A mesma lista, no mesmo lugar, para as mesmas pessoas, poucos minutos uma após a outra — mas apresentadas de forma diferente! A única coisa que mudou entre o v. 13 e o v. 21 é o contexto, por isso a importância de percebermos a figura de linguagem usada.

Na primeira vez que apresenta a lista, sem conjunções, o Senhor está apresentando um princípio para o nosso serviço; na segunda vez, apresentando a mesma lista, porém com todas as conjunções, o Senhor apresenta uma parábola sobre a nossa salvação.

Um princípio para o serviço

Nos vs. 7-14, a ênfase do Senhor Jesus é num princípio que deve governar a nossa vida e o nosso serviço para Ele. Este princípio é resumido no v. 11: “Qualquer que a si mesmo se exaltar será humilhado, e aquele que a si mesmo se humilhar será exaltado”. Este princípio geral é aplicado a duas situações diferentes: a alguém que é convidado, e a alguém que convida. O trecho apresenta um quiasma (outra figura de linguagem muito usada na Bíblia):
  • O princípio aplicado a quem é convidado (vs. 7-10)
    • O princípio apresentado (v. 11)
  • O princípio aplicado a quem convida (vs. 12-14)
Qualquer que seja a nossa situação, o princípio que deve nos guiar é o mesmo: não procurarmos recompensa, nem riquezas, nem glória aqui na Terra, mas ocuparmos o último lugar, esperando que Deus, na glória futura, nos recompensará.

Assim, na lista apresentada no v. 13, o Senhor não quer dar destaque a cada um dos quatro tipos de pessoas necessitadas que Ele menciona. A lição principal não é que, ao dar uma festa, preciso convidar uma pessoa pobre, outra aleijada, outra manca, e outra cega. O Senhor não usa as conjunções, de sorte que passamos rapidamente pela lista, e chegamos logo à conclusão: “Quando fizeres convite, chamas os pobres, aleijados, mancos, cegos, e serás bem-aventurado”. O Senhor está nos mostrando que devemos convidar pessoas que não podem nos recompensar (das quais os quatro tipos da lista são apenas um exemplo), sabendo que “na ressurreição dos justos” seremos recompensados. Não são apenas os pobres, aleijados, mancos, cegos que devemos convidar, mas qualquer um que não tenha condições de nos recompensar. É claro que podemos convidar outros também, mas o verdadeiro cristão terá prazer em ajudar aqueles que não podem retribuir o favor, e não simplesmente ajudar querendo alguma coisa em troca.

É assim que agimos?

Uma parábola sobre a salvação

Na parábola apresentada nos v. 15-24, temos uma figura da salvação, num contexto dispensacional. A parábola fala de dois convites bem distintos, e entre estes dois convites há quatro diferenças importantes:

  • O tempo dos convites: o segundo foi feito somente depois que o primeiro foi recusado;
  • O tipo de convidado: primeiro foram pessoas nobres, depois os pobres, e aleijados, e mancos, e cegos;
  • Os termos do convite: o primeiro convite dizia: “Vinde”, mas na segunda vez o servo foi ordenado a trazer alguns;
  • O tratamento do convite: os primeiros recusaram, os segundos aceitaram.

É proveitoso contrastar esta parábola com a parábola semelhante registrada em Mt 22. Tanto lá quanto aqui encontramos a terceira de três parábolas contadas depois que os fariseus ficaram sem palavras. Compare a sequência dos acontecimentos:


Nas parábolas em si, há diversas diferenças importantes:


Parece que, em Mateus, a ênfase está naqueles que rejeitaram o convite e como o Senhor os trata (lemos dos homicidas sendo destruídos e das suas cidades sendo queimadas, e do homem sem veste nupcial sendo jogado fora), enquanto que aqui, a ênfase parece recair sobre aqueles que tomaram o lugar dos que rejeitaram (temos a descrição detalhada dos quatro tipos de pessoas convidadas na “segunda chamada”, e nenhuma menção da destruição dos primeiros). Ambas as parábolas falam de como Israel rejeitou o convite, e por isso os Gentios, indignos, foram convidados. Mateus destaca mais a rejeição de Israel, Lucas enfatiza o caráter indigno dos Gentios.

Comparando o ensino desta parábola com o que vimos na parte anterior, sobre o princípio que deve nos guiar em relação a convites, vemos como o Senhor também convida para a Sua ceia aqueles que não tem com que O recompensar.

Agora, repare como o polissíndeto usado pelo Senhor se encaixa perfeitamente neste contexto. O primeiro grupo de convidados, que representa Israel, é chamado somente de “convidados”. O segundo grupo, que representa os salvos desta dispensação, a Igreja, é descrito de quatro formas diferentes. Mas aqui o Senhor não omite as conjunções para nos ajudar a passar rapidamente por cima da lista; pelo contrário, Ele usa todas as conjunções possíveis, para nos forçar a caminhar lentamente por esta descrição triste, porém muito real, da nossa condição. Todos nós éramos, espiritualmente, pobres, e também aleijados (“mutilados”), e também mancos, e também cegos! Não são palavras genéricas que descrevem alguns de nós; todas elas se aplicam a todos nós antes da nossa conversão!

Meditando assim nos detalhes desta descrição, percebemos quanto ela combina com a realidade, e também quanto ela exalta o amor de Deus, que convidou para a Sua ceia pessoas pobres, e aleijadas, e mancas, e cegas! “Já sabeis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, por amor de vós Se fez pobre; para que pela Sua pobreza enriquecêsseis” (II Co 8:9)

Descobrindo mais figuras

É impressionante ver como o Senhor mudou a forma de apresentar estas quatro classes de pessoas desprezadas, usando um polissíndeto poucos minutos depois de ter usado um assíndeto. As palavras não mudaram; os ouvintes eram os mesmos; a única coisa que mudou era o contexto. Na primeira ocasião o Senhor destaca as bênçãos daqueles que convidam os desprezados (não importa, realmente, que tipo de desprezado seja convidado), mas na segunda ocasião Ele enfatiza as características daqueles que Ele mesmo convidou. Na primeira lista não era necessário meditar nas qualidades específicas das pessoas (eram apenas alguns exemplos), por isso as conjunções são omitidas (assíndeto). Já na segunda lista, as qualidades específicas apresentadas são a razão principal da lista, por isso são usadas todas as conjunções possíveis. A sabedoria do Senhor ao falar, e a perfeição da inspiração do Espírito quando Lucas escreveu, nos impressionam.

Em terminar este pequeno artigo, gostaria de fazer um alerta para aqueles que desejam descobrir mais exemplos de assíndetos e polissíndetos no NT: é necessário verificar suas conclusões pelo texto grego do NT, pois as versões em português muitas vezes escondem estas figuras de linguagem (como foi destacado no caso de Lucas cap. 14).

Se você não sabe ler grego, não se desespere. Eu também não sei, mas há muitos recursos disponíveis hoje em dia para ajudar-nos. Um exemplo é o site Gospel Prime que apresenta o texto grego do NT. Com um pouco de trabalho (e muita cautela para não chegar a conclusões precipitadas!) é possível procurar pela conjunção kai (“e” em português) e ver se ela está presente ou não no texto que você estiver estudando.

Se algum leitor precisar de alguma outra informação, pode entrar em contato comigo nos comentários abaixo.


Leia o próximo artigo nesta série: Zeugma.


© W. J. Watterson

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Pregações de R. E. Watterson

Na conferência em Pirassununga, 15/11/2007
Seguem abaixo links para algumas gravações de pregações feitas pelo meu pai, Ronald E. Watterson. Em Agosto de 1997, depois de muito tempo buscando um diagnóstico para os problemas que o incomodavam, foi confirmado que meu pai sofria do Mal de Parkinson. Ele ainda continuou pregando por mais de uma década depois deste diagnóstico, lutando contra o avanço desta doença cruel.

Meu pai faleceu em 30 de Maio de 2016, com 80 anos de idade. Desde que publiquei os links abaixo, tive acesso a outras mensagens dele — hoje, esta página contém links para 101 pregações. Agradeço aos irmãos José Carrasco e Ubiratã Torres, que forneceram diversas destas mensagens.

Que Deus seja glorificado, e Seu povo edificado, através destas pregações.

Atualização em 19/08/2019 — Devido a configurações de privacidade da Microsoft, os links abaixo estão com problema. Temporariamente, acesse a pasta com todas as pregações neste link.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Correção sobre a cronologia neobabilônica

Prezados irmãos,

O lema da família Watterson, desde o século XIII, é “Veritas vincit omnia” (“A verdade vence sempre”). O que importa mesmo, no final das contas, não é o que eu penso ou prefiro, mas sim a verdade. Sendo assim, devemos estar sempre prontos a rever nossas convicções, e corrigi-las sempre que necessário.

Neste post, desejo reconhecer que eu estava errado em relação àquilo que tenho afirmado (por escrito e do púlpito) sobre a cronologia do período neobabilônico. É um detalhe que só vai interessar um grupo muito pequeno da audiência (muito pequena) deste blog; mas um detalhe que, para quem se interessa pelo assunto, é importante. Entendendo que eu posso ter influenciado alguém a crer em algo que considero errado, é minha responsabilidade tentar corrigir este erro.

Primeiro, apresento a correção, resumidamente; depois, para quem estiver interessado, uma explicação um pouco mais detalhada.

Correção

Até poucos dias atrás eu aceitava a cronologia do período neobabilônico exposta por Martin Anstey (The Romance of Bible Chronology. London, Marshal Brothers, 1913). Duas datas-chave desta cronologia são:
  • Destruição de Jerusalém — 504 a.C.
  • Primeiro ano de Ciro — 454 a.C.
Descobertas arqueológicas no último século, porém, provaram que Anstey estava errado, e que a cronologia recebida (deste período) estava certa. Sendo assim, tenho que reconhecer que as datas citadas acima deveriam ser modificadas da seguinte forma:
  • Destruição de Jerusalém — 586 a.C.
  • Primeiro ano de Ciro — 539 a.C.
Conforme o tempo permitir, pretendo examinar este blog e corrigir qualquer data relacionada a este período, baseado nestes dados.

Explicação

Por que eu seguia Anstey? E por que mudei de opinião?

Os argumentos apresentados por Anstey eram muito coerentes diante dos fatos conhecidos na época em que o livro dele foi escrito (1913). Naquela época, a cronologia secular do período em questão era baseada nos escritos de Ptolemy (ou Ptolomeu), principalmente numa lista de reis da Babilônia e Persa (o Cânon Real) preparada muitos séculos depois dos fatos. Como os dados apresentados por Ptolemy não combinavam com a forma como Anstey interpretava algumas profecias do Velho Testamento (principalmente a profecia das setenta semanas de Daniel cap. 9), Anstey afirmou (e eu repeti) que a palavra do profeta inspirado era mais confiável do que a palavra dum astrônomo egípcio. Não haviam outras fontes daquele período que poderiam confirmar os dados de Ptolemy, ele não era contemporâneo dos reis que descrevia, então não parecia sábio seguir cegamente um aparato cronológico escrito por um astrônomo que viveu tanto tempo depois dos fatos em questão.

Hoje em dia, porém, a realidade é outra. Milhares de documentos da Babilônia antiga foram descobertos no século XIX e XX, e conforme vão sendo traduzidos e publicados (um processo lento) vai se percebendo que os dados cronológicos apresentados por Ptolemy são altamente confiáveis. Eis alguns exemplos:
  • Há um “diário astronômico” conhecido como VAT 4956 que descreve, em diversas ocasiões diferentes, a posição da Lua e dos cinco planetas conhecidos naquela época. Cerca de trinta destas descrições estão bem preservadas, e são datadas no diário (é dada a hora da observação, o dia, o mês, e o ano: todas as observações são do início do 37º ano ao início do 38º ano de Nabucodonosor). Com os conhecimentos astronômicos que temos hoje em dia, a posição da Lua e dos planetas em qualquer data pode ser facilmente calculada. Astrônomos afirmam que, contando para trás a partir dos dias atuais, as posições relativas ocupadas pela Lua e pelos planetas conforme descritos no diário aconteceram no ano de 568/567 a.C. (da primavera de 568 à primavera de 567). Assim fica estabelecido, pelo curso dos corpos celestes (e não simplesmente por tabelas cronológicas de antigos), que o 37º ano de Nabucodonosor começou em 568 a.C.
  • Além disto, milhares de contratos comerciais daquela época foram descobertos nos últimos anos (da firma conhecida como “Egibi e filhos”, por exemplo). Estes contratos são todos datados, trazendo a inscrição: “ano XX do rei XXXXX”. Nestes milhares de contratos descobertos existe menção feita a todos os anos de todos os reis mencionados na lista dos reis de Ptolemy (por exemplo, se Ptolemy afirma que um determinado rei reinou durante vinte anos, existem contratos datados do 1º ano, outros do 2º ano, e assim sucessivamente, até ao 20º ano deste rei). Todos estes milhares de contratos concordam perfeitamente com a lista de Ptolemy.
Diante de tais fatos, não é coerente afirmar mais que a cronologia recebida do período neobabilônico esta errada; é a interpretação de Anstey (e, por consequência, a minha), que estava errada.

Gostaria de ressaltar que trata-se de rejeitar uma interpretação humana, não as palavras inspiradas de Deus. Nunca terei vergonha de discordar das interpretações dos homens (não importa quão sábios sejam estes homens) quando estas interpretações discordarem da Palavra de Deus. Um bom exemplo disto é a teoria da evolução; os sábios deste mundo interpretam o registro dos fósseis como sendo prova de que tudo veio do nada, enquanto que a Bíblia afirma que Deus criou tudo. Acredito no que Deus diz na Sua Palavra, e prefiro ver os fósseis como o registro de transformações cataclísmicas controladas por Deus.

Como escrevi acima, nunca terei vergonha de discordar das interpretações dos homens quando eles discordarem da Palavra de Deus, mas não posso defender uma interpretação minha quando ela contradiz fatos históricos que não podem ser negados.

Fica o registro, portanto, da correção, acompanhada da oração para que Deus nos ajuda mais e mais a compreender a Sua Palavra e a Sua vontade.

© W. J. Watterson

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Nove figuras das igrejas locais

O Novo Testamento usa diversas figuras diferentes para ilustrar o que é, e como deve funcionar, uma igreja local. Uma forma de organizar estas figuras, facilitando a compreensão das diferenças entre elas, é lembrar de como o VT enfatizou a ideia de Deus habitando com o Seu povo no Tabernáculo e no Templo, e pensar na igreja local principalmente em termos de uma habitação divina hoje.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Figuras de linguagem na Bíblia (introdução)

Introdução

Creio que a Bíblia, na sua totalidade, é a Palavra inspirada de Deus; “… homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo” (II Pe 1:21). Creio que as verdades contidas neste livro são de origem divina, mas também creio que as palavras e expressões usadas para transmitir estas verdades foram igualmente escolhidas por Deus, uma por uma. Não podemos valorizar a mensagem enquanto desprezamos o meio que Deus usou para transmitir esta mensagem.

Quando lemos a Bíblia prestando atenção não só nas verdades que ela ensina, mas também na sua gramática, percebemos que o Espírito Santo fez uso frequente e repetido de figuras de linguagem em todos os livros da Bíblia. Por que Ele o fez? O que podemos aprender com isto? Sugerir respostas a estas perguntas é o objetivo deste estudo.

Comecemos, porém, definindo a expressão “figura de linguagem”.

Definindo o termo

Para que possamos nos comunicar de forma eficaz é necessário seguir certas leis e regras — as palavras que usamos precisam ter um significado estabelecido, e a forma como unimos estas palavras para formar frases precisa também seguir uma estrutura reconhecida. Raramente paramos para pensar nisto ao falar ou escrever, mas sabemos que precisa ser assim. Se cada um usasse palavras com o significado que quisesse, e se as palavras pudessem ser misturadas numa frase sem qualquer preocupação com sua ordem e com a relação entre elas, seria um verdadeiro caos — nossa comunicação traria confusão ao invés de compreensão! Para evitar este caos existem as regras de linguagem, e toda comunicação coerente e compreensível segue estas regras (conscientemente ou não).

O estudo e o tratado destas regras é responsabilidade da gramática; porém a própria gramática conhece, e aceita, o desvio consciente destas regras de linguagem em determinadas circunstâncias, com o objetivo de chamar atenção ao que está sendo dito. Este desvio da norma padrão é o que chamamos de “figura de linguagem” (“figura” no sentido de “forma”, não no sentido de “ilustração”). É importante enfatizar que “figura de linguagem” não é simplesmente uma ilustração, algo inferior à realidade, mas sim uma forma diferente de escrever (que pode até ser uma forma figurada, mas não necessariamente) que realça a realidade; ou o ato de desviar-se da norma padrão desejando alcançar uma maior expressividade (“Forma de expressão que foge da norma rigorosa, apresentando alterações fonéticas, morfológicas ou sintáticas … que empresta ao pensamento mais energia, mais vivacidade, e/ou confere à frase mais beleza e graça”, Aurélio).

Pelas definições formais acima, percebemos que as figuras de linguagem servem para chamar atenção ao que está sendo transmitido. Bullinger (veja bibliografia abaixo) usa uma ilustração muito interessante para realçar a importância das figuras de linguagem. Numa viagem longa de trem, ninguém presta muita atenção enquanto tudo flui naturalmente; mas assim que a velocidade do trem diminui, ou algo inesperado acontece, todo mundo está alerta. Assim com um texto, diz Bullinger; enquanto tudo segue as leis normais que regem a gramática, seguimos nossa leitura tranquilos, sem preocupações ou sobressaltos. Mas quando notamos um desvio das leis conhecidas; quando algo é apresentado de uma forma que não é normal, somos levados a parar e perguntar: “Por que este desvio? Qual a intenção do autor ao empregar esta figura aqui?”

É importante repetir que as figuras de linguagem pertencem também ao campo da gramática, e portanto estão sujeitas a leis e regras como qualquer outra parte de uma língua. Não são uma espécie de Faroeste gramatical, onde não há lei e tudo vale. Ninguém pode escrever algo que foge às leis da gramática e simplesmente dizer: “É figura de linguagem!” Não podemos confundir “vícios de linguagem” (desvios defeituosos da norma padrão, que só confundem) com “figura de linguagem” (um desvio consciente da norma padrão, que realça).

Resumindo: figuras de linguagem são desvios conscientes da norma padrão que tem por finalidade realçar a beleza ou expressividade de um texto, e que também seguem as regras de linguagem.

Defendendo o tema

Nosso objetivo neste estudo, porém, não é estudar gramática, mas sim apreciar um pouco mais das belezas e perfeições da Bíblia. Tendo feito este pequeno desvio pelos campos da gramática e olhado rapidamente para a definição de “figura de linguagem”, precisamos ocupar pelo menos um pouco de espaço para defender este estudo do uso de figuras de linguagem na Bíblia, pois alguns afirmam que tal estudo, além de desnecessário, é desprezível. Desnecessário, dizem, porque não acrescenta nada ao conhecimento que temos de Deus; desprezível, porque aumenta muito a opinião que temos de nós mesmos. Alguns descreveriam esta ocupação com as palavras dirigidas aos ascéticos: “As quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria … mas não são de valor algum senão para a satisfação da carne” (Cl 2:23).

Em primeiro lugar, pensemos na necessidade deste estudo. Para conhecer a Bíblia é necessário que eu saiba a diferença entre metonímia e sinédoque? Se eu me tornar um doutor em retórica e souber definir e distinguir todas as figuras de linguagem, terei um conhecimento mais elevado da vontade de Deus para a minha vida?

A resposta a estas perguntas é um sonoro “Não!” A Bíblia não foi escrita para os eruditos e retóricos, mas para “os pequeninos” (veja Mt 11:25). A mensagem da Bíblia não está em código, necessitando de sabedoria e inteligência humana para decifrá-la. Pelo contrário, a própria Bíblia afirma que sua mensagem é conhecida pelo Espírito Santo, e não pela inteligência humana (I Co 3:11-16). O caminho principal para compreender a mensagem das Escrituras não é estudar gramática e retórica, mas sim permitir que o Espírito Santo nos revele a Sua própria Palavra. “O segredo do Senhor é com aqueles que O temem” (Sl 25:14), diz o Salmista, não com aqueles que são mestres em gramática! O que Deus quer transmitir na Sua Palavra é de fácil compreensão, desde que haja no leitor um espírito submisso e obediente.

"Ora, então por que perder tempo com este assunto?" pergunta alguém. Como resposta, permita-me apresentar o assunto de outro ponto de vista. Deus usou figuras de linguagem na Sua Palavra? A resposta é muito clara: “Sim — e milhares delas!” Diante deste fato, não devemos perguntar: “Por que preciso prestar atenção nestas figuras?”, mas sim: “Por que irei negligenciar estas figuras?” Se Deus, na Sua infinita sabedoria, achou por bem usar figuras de linguagem em todos os livros das Escrituras, quem sou eu para dizer que este detalhe da Bíblia pode ser desprezado? Como é importante estudar cada palavra, cada detalhe das Sagradas Escrituras, reconhecendo que tudo é inspirado por Deus. Como disse Jeremias: “Achando-se as Tuas palavras, logo as comi, e a Tua Palavra foi para mim o gozo e a alegria do meu coração” (Jr 15:16). O caminho para apreciar a Bíblia como um todo (“a Tua Palavra”) é buscar, achar e digerir cada pequena parte que compõe este Livro (“as Tuas palavras”).

Precisamos encarar o fato de que Deus apresenta Suas verdades, que são sublimes na sua simplicidade, numa forma extremamente atraente e bela. Todas as páginas da Bíblia registram diversas figuras de linguagem, e o estudo deste assunto certamente é importante e necessário. Não porque vai nos revelar alguma doutrina nova, ou algum mistério que os “indoutos” não conseguem compreender — mas porque vai nos levar a apreciar melhor a perfeição deste livro.

Há também outro detalhe; precisamos lembrar que a Bíblia é o único texto perfeito na face da Terra! Qualquer outra obra literária, por mais que tenha alcançado status de “obra-prima”, por mais que seu autor seja reconhecido como um gênio literário, será sempre uma obra produzida por um homem de conhecimento e capacidades limitadas. Somente a Bíblia foi escrita por um Autor onisciente e onipotente. É verdade que o estilo que predomina na Bíblia é a simplicidade, e há obras humanas que são mais rebuscadas e gramaticalmente enfeitadas do que a Bíblia (como um todo) — mas isto é porque Deus queria instruir, e não impressionar; Ele escrevia para todos nós, e não somente para um pequeno grupo de intelectuais e eruditos. O que estou argumentando não é que a Bíblia é a obra literária mais rebuscada que existe, mas sim que é a única em toda a face da Terra onde cada palavra (literalmente!) tem um significado e importância; é a única obra perfeita.

Esta perfeição da Bíblia coloca mais importância sobre as figuras de linguagem que ela usa. Como disse Bullinger:
O homem pode usar figuras em ignorância, sem nenhuma finalidade específica. Mas quando o Espírito Santo usa palavras humanas e aplica uma figura (ou forma peculiar), é com uma finalidade especial, e esta finalidade deve ser observada e tratada com a devida importância.
Em outras palavras, autores humanos podem usar uma figura de linguagem sem perceber que usaram, ou somente porque ouviram outro falar desta forma. Podem, também, usar uma figura que não seria a mais indicada naquele contexto. Mas quando o Espírito Santo usa uma figura de linguagem, podemos ter certeza absoluta que Ele o fez com perfeição, e que há tesouros de conhecimento para serem revelados ali. Nunca será perda de tempo prestar atenção aos pequenos detalhes com os quais o Espírito Santo ornamentou a Bíblia.

Distinguindo os tipos

As figuras de linguagem são tão numerosas quanto antigas. Os gregos antigos deram nome a mais de duzentas destas figuras, mas o verdadeiro desafio está em classificá-las de uma forma útil. Uma pesquisa sobre este assunto mostrará diversas formas diferentes de se dividir e classificar as figuras de linguagem, cada uma tendo suas vantagens e desvantagens.

Devido às minhas limitações neste assunto, não vou me atrever a resolver a questão. Mas como precisamos de algum tipo de classificação para não nos perdermos em meio a tantas figuras, vou seguir o esquema proposto por Bullinger, que divide as figuras de linguagem em três grupos:

  1. Figuras que são caracterizadas por omissão (de palavras ou de significado — figuras elípticas);
  2. Figuras que são caracterizadas por acréscimo (pela repetição de palavras ou de significados — figuras pleonásticas);
  3. Figuras que são caracterizadas por alteração (no uso, na ordem, ou na aplicação de palavras).

Na sua monumental obra, Bullinger usou mais de mil páginas para nomear, classificar, descrever e ilustrar (com passagens bíblicas) duzentas e dezessete figuras de linguagem encontradas na Bíblia. Minha intenção neste estudo é bem mais limitada: pretendo somente destacar algumas destas figuras, como uma pequena introdução ao assunto. Há muito ainda que preciso aprender, e há muito ainda para ser explorado nas Escrituras. Mas se esta introdução servir para despertar em alguém o interesse para aprofundar-se neste estudo, e se criar em todos nós o desejo de prestarmos mais atenção aos pequenos detalhes da Bíblia, será motivo de gratidão a Deus.

Em próximos artigos, se Deus permitir, destacarei algumas das figuras de linguagem mais comuns na Bíblia.

Leia o próximo artigo nesta série: Assíndeto e Polissíndeto.

Bibliografia resumida:
BULLINGER, E. W. Figures of Speech used in the Bible Explained and Illustrated. Michigan, Baker Book House, 23rd printing, 2003.


© W. J. Watterson

segunda-feira, 31 de março de 2014

A desilusão de Simeão

Ouvi uma pregação hoje à noite sobre a mulher pega em adultério em João cap. 8, e lembrei-me deste texto escrito na minha mocidade (poucos anos atrás :-)

A desilusão de Simeão


Simeão, desde pequeno, se destacara no meio dos seus colegas, não apenas pela sua saúde e inteligência, mas também pela sua devoção a Jeová, o Deus de seus pais. Bem educado e esforçado, ele cumpria à risca as determinações da Lei de Moisés, estudava diligentemente as Escrituras, e sonhava com o dia em que seria reconhecido como um mestre da Lei.

Naquela manhã tranquila em Jerusalém, caminhando em direção ao Templo, seu coração parecia flutuar à sua frente, e sua consciência, tranquila, estampava um sorriso contagioso em sua face. Ele seguia alheio a tudo ao seu redor, com mil e um sonhos alegres ocupando sua mente de adolescente.

Repentinamente, porém, seus sonhos foram interrompidos. Um grupo de homens, escribas e fariseus, desceram a rua correndo e entraram numa casa logo à sua frente. Simeão parou, espantado, ouvindo a gritaria que se iniciara dentro da casa, enquanto pessoas corriam para todos os lados. Poucos minutos depois, com uma mulher segura pelos braços, a multidão saiu da casa, e tomou a direção do Templo.

Curioso e interessado, Simeão correu ao lado de Judas, seu tio, que fazia parte da multidão enraivecida. “Que confusão é esta, tio Judas?”

Sem parar de correr, seu tio respondeu: “Esta mulher foi apanhada em adultério, e vamos levá-la para Jesus, o nazareno. Vai ser uma forma de pegá-lo em contradição”.

“Mas como?”, perguntou Simeão.

“É simples”, respondeu seu tio; “Se ele disser que ela deve ser apedrejada, como manda a Lei, então estará desobedecendo à lei romana, e estará negando sua pregação, que fala tanto de amor e perdão. Mas se ele disser que ela deve ser perdoada, então ele estará indo contra a lei de Moisés! Entendeu? Ele não tem saída!”

“Puxa”, pensou Simeão; “É mesmo; ele não tem saída! Essa eu quero ver!” E o garoto se uniu à multidão, que crescia cada vez mais. Apesar de pequeno, ele já havia aprendido a odiar a Jesus, que se dizia Filho de Deus. Aos olhos de Simeão e seu povo, isto era blasfêmia, e ele faria qualquer coisa para acabar com o Carpinteiro de Nazaré que ousava dizer que era Deus!

Poucos minutos depois, chegaram ao Templo. Simeão foi logo se enfiando no meio do povo, querendo ver tudo de perto. Empurrando daqui e dali, conseguiu chegar ao centro da roda. Lá estava a mulher, em pé no meio de todos, cabisbaixa; um pouco ao lado ele viu Jesus, que estava inclinado, calmamente escrevendo com o dedo na terra.

“Ele não vai dizer nada?”, Simeão sussurrou ao homem que estava ao seu lado.

“Não sei. Os escribas já lhe apresentaram o problema, mas ele começou a escrever na terra e não disse nada!”

Naquele momento Jeosafá, o mestre de Simeão, levantou a voz e disse, sem conseguir disfarçar seu desprezo e ironia: “Mestre, não respondes à nossa pergunta? Devemos apedrejá-la?”

Houve uma pequena pausa; todos fitavam Jesus, alguns ansiosos, outros com ar de vitória. Finalmente Ele se endireitou. Olhou primeiro para Jeosafá, depois para a mulher, e então permitiu que Seu olhar passasse pela multidão ao Seu redor. Simeão ficou surpreso ao ver, no olhar de Jesus, um brilho de ternura, e algo mais; parecia tristeza. Jesus então falou: “Aquele dentre vós que estiver sem pecado, atire a primeira pedra contra ela”.

O silêncio foi instantâneo. “Ele concordou em apedrejá-la”, pensou o garoto. “Agora podemos acusá-lo perante os romanos, e ele será preso!” E ele olhou em redor, esperando ver alegria e satisfação no rosto daqueles homens.

Mas não. O que ele viu deixou-o ainda mais surpreso. Todos olhavam para o chão, aparentemente envergonhados, num silêncio constrangedor. “Mas o que está acontecendo?” pensou ele.

Depois de vários minutos, o velho Levi, lá do outro lado do círculo de pessoas, moveu-se, caminhando lentamente em direção à mulher. “É agora!” pensou Simeão, quase gritando de euforia.

Mas o velho escriba não ergueu os olhos; foi passando, atravessou o círculo que haviam feito em torno de Jesus, e começou a retirar-se. Simeão olhava, atônito, enquanto os velhos mestres, um após o outro, seguiam seu exemplo, e afastavam-se. Até Jeosafá se levantou para ir embora!

“Não é possível!”, Simeão pensou. Com o coração ardendo, ele saiu correndo atrás de seu mestre, puxou-o pelo braço e quase gritou: “Mestre, o que vocês estão fazendo?” Jeosafá olhou para o rosto coberto de lágrimas do garoto, mas não conseguiu dizer nada. Desviando o olhar, colocou a mão no ombro de Simeão, depois virou-se e partiu.

Simeão, porém, permaneceu imóvel, como que grudado no chão. Pois naquele instante em que os olhos de Jeosafá haviam se encontrado com os seus, Simeão havia visto, claramente, a vergonha que Jeosafá estava sentindo. E como se recebesse um golpe, ele entendeu; todos aqueles mestres, escribas e fariseus, todos eles estavam se retirando, do mais velho ao mais moço, porque todos eram pecadores. Ninguém tinha coragem de atirar a primeira pedra! O mundo de Simeão estava desabando. Ele virou-se novamente para onde Jesus estava, mas não havia mais ninguém ali com Ele. Até a mulher estava indo embora. Mas como era diferente o rosto dela! Se em Jeosafá havia tristeza e vergonha, o rosto dela até brilhava, repleto de paz e alegria! “Mas ela é pecadora!” pensou Simeão, a boca seca, os joelhos tremendo, numa mistura de raiva e confusão; “Ela é a pecadora! Isto não é certo. Ela é a pecadora!

Foi quando ele viu que Jesus se levantava, olhando em sua direção; e o garoto lembrou-se das palavras do Mestre dos mestres: “Aquele dentre vós que estiver sem pecado, atire a primeira pedra contra ela”. Neste instante ele viu o seu pecado; não apenas o pecado daquela mulher, mas o pecado de Simeão! Toda sua preocupação em guardar a Lei, seu orgulho de ser judeu, nada disso importava mais. Sua consciência, finalmente acordada, não parava de lembrá-lo dos muitos pecados que ele cometera. Ele era zeloso da Lei, temente a Deus, educado e obediente — mas agora ele sabia também que era pecador.

Era o fim; sem conseguir olhar nos olhos dAquele que ele viera acusar, Simeão afastou-se, envergonhado e desolado.

*******

Prezado leitor, você não quer ser honesto consigo mesmo, e reconhecer, como Simeão, que você também é pecador? Não preocupe-se com os outros — é o teu pecado que importa. Você teria coragem de atirar a primeira pedra? Nem eu, nem você, nem Simeão, nem ninguém — somos todos pecadores. Diz a Bíblia: “Não há diferença, porque todos pecaram” (Rom. 3:23).

Mas uma vez reconhecendo este fato, não se retire como Simeão — venha ao Senhor Jesus. A Bíblia diz Ele veio ao mundo exatamente para buscar pecadores como eu e você: “o Filho do Homem veio buscar e salvar o perdido” (Lucas 19:10). Ele morreu na cruz em nosso lugar, e o Seu sangue “nos purifica de todo pecado” (I João 1:7). Religião pode ter proveito, mas não perdoa pecados; boas obras são desejáveis, mas não perdoam pecados; é somente o Filho do Homem que “tem poder para perdoar pecados” (Marcos 2:10). A Bíblia afirma que quem crê nEle tem a vida eterna, e recebe o perdão dos pecados (João 3:36; Atos 10:43).

Você é pecador, mas Cristo pode te salvar do pecado e da condenação eterna.



© W. J. Watterson

quinta-feira, 20 de março de 2014

Diferenças entre as listas de Esdras e Neemias

Apresento abaixo uma tabela comparativa das listas dos filhos de Israel que voltaram do Cativeiro na Babilônia. Há duas listas nas Escrituras; uma em Esdras cap. 2, a outra em Neemias cap. 7, e há duas coisas sobre estas listas que devem ser mencionadas:

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Linha do Tempo resumida do VT

O relato histórico apresentado no Velho Testamento não é uniforme — às vezes a narrativa passa voando por centenas de anos em poucos versículos, às vezes ela diminui a velocidade e ocupa um livro inteiro para falar de um período de trinta dias. É fundamental entender este fato, e procurar perceber a velocidade da narrativa ao estudar o VT.

O gráfico abaixo apresenta uma visão global dos livros históricos do VT (de Gênesis a Ester) colocados numa linha do tempo que vai da Criação do mundo até o nascimento do Messias, o Senhor Jesus Cristo. Alguns acontecimentos principais (como o Dilúvio, o Êxodo, etc.) estão marcados na linha do tempo, mas a principal finalidade do gráfico é mostrar o período de tempo ocupado por cada livro, e a relação entre os livros em relação ao tempo.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Devemos jejuar hoje em dia?

Introdução

Qual deve ser a posição do cristão hoje em relação ao jejum? Nesta presente Dispensação, será que jejuar é algo indicado (que todo cristão deve praticar), inadequado (que todo cristão deve evitar), ou indiferente (quem faz não erra, quem não faz não erra)?

Para responder esta pergunta precisamos pesquisar o Novo Testamento, reconhecendo a diferença entre a Velha Aliança (a época da Lei) e a Nova Aliança (a época da graça em que vivemos hoje). As práticas de Israel na época do Velho Testamento e dos Evangelhos (com seus sacrifícios, dízimos e jejuns) pertencem à Dispensação da Lei, e não são o guia prático para os salvos hoje — hoje vivemos na Dispensação da Graça, ou da Igreja (um período de tempo que começou em Atos cap. 2 e continuará até o Arrebatamento da Igreja).

Comecemos definindo a palavra. “Jejum”, no NT, é a tradução das palavras gregas nesteia, nestis (substantivos) ou nesteuo (verbo), cuja definição, de acordo com o dicionário de Thayer, é a seguinte:
“Abster de alimento ou bebida como um exercício religioso; ou completamente, se o jejum durasse somente um dia, ou de alimentos costumeiros e escolhidos, se continuasse por vários dias.”
A palavra (nas suas diversas formas) aparece trinta e uma vezes no NT, e podemos dividir estas ocorrências em quatro grupos:

  1. Referindo-se a uma experiência comum, do cotidiano. Algumas vezes a palavra não tem nenhuma conotação religiosa, mas simplesmente descreve alguém que, por que não teve oportunidade de comer, está em jejum. Por exemplo, quando a multidão seguiu o Senhor para ouvir Seus ensinos, Ele disse: “Tenho compaixão da multidão, porque já está comigo há três dias, e não tem o que comer; e não quero despedi-la em jejum, para que não desfaleça no caminho.” Ele simplesmente quis dizer que Ele não queria despedir a multidão com fome; Ele queria primeiramente lhes dar algo a comer. Há quatro ocorrências da palavra com este sentido (Mt 15:32; Mc 8:3; II Co 6:5, 11:27). Estas ocorrências não tem relação com o assunto deste estudo, pois não se referem a jejuar no sentido religioso ou espiritual.
  2. Referindo-se a uma festa nacional dos judeus. Uma vez (At 27:9) a palavra refere-se ao dia da Expiação, um feriado nacional para os judeus. Esta ocorrência também não tem relação com o assunto deste estudo, pois descreve algo que fazia parte do cerimonial religioso do Velho Testamento.
  3. Ensino. Dezenove vezes a palavra é usada num contexto em que ensino está sendo dado, e convém analisar estas ocorrências mais detalhadamente abaixo.
  4. Exemplos. A palavra é usada sete vezes apresentando seis exemplos de alguém jejuando: Ana (Lc 2:37), o Senhor Jesus (Mt 4:2), o fariseu (na parábola de Lc 18:12), Cornélio (At 10:30), alguns irmãos em Antioquia (At 13:2-3), e Paulo e Barnabé (At 14:23).

Destes quatro grupos, somente os dois últimos tem alguma relação direta com o nosso assunto, e podem nos revelar alguma coisa sobre qual deveria ser nossa posição em relação ao jejum nesta dispensação em que vivemos. Vamos considerá-los mais detalhadamente.

Ensino que inclui menção ao jejum

As dezenove ocorrências deste grupo referem-se a quatro ocasiões diferentes:

i) No Sermão da Montanha (Mt 6:16-18)

Precisamos entender que este ensino foi dado pelo Senhor Jesus quando a Dispensação da Lei ainda estava em vigor; seria somente no dia de Pentecostes registrado em Atos cap. 2, alguns anos depois, que a Igreja começaria a existir. Portanto, “quando examinamos os detalhes do manifesto [no Sermão da Montanha] é necessário ter discernimento. Uma aplicação geral de tudo leva à confusão; ao invés disto, devemos nos perguntar: quais detalhes eram para o Seu povo de então, quais são para o Seu povo hoje, e quais para o Seu povo no futuro?” (HEADING, J. Comentário Ritchie do NT, volume 1. Pirassununga, Editora Sã Doutrina, 2002. Pág. 103).

De modo geral, podemos dizer que os princípios espirituais que estão por trás dos detalhes no Sermão da Montanha são princípios eternos, mas que os detalhes materiais e físicos não tem, necessariamente, aplicação direta a nós nesta Dispensação. Um exemplo deve deixar isto claro: em Mateus 5:23-24 o Senhor fala sobre trazer uma oferta ao altar, e a necessidade de primeiro reconciliar-se com um irmão ofendido, para depois apresentar a oferta. O ato físico de trazer um animal diante do altar não deve ser praticado hoje, mas o princípio que está por trás deste ato (isto é, que é necessário reconciliar-se com seu irmão antes de servir a Deus) certamente continua válido (veja I Jo 4:20, por exemplo). Preservamos o princípio (a prioridade do perdão) pois ele é eterno, mas não imitamos o ato físico (trazer uma oferta ao altar) pois ele pertence a outra Dispensação.

Lembrando do contexto em que estes versículos se encontram, não podemos basear nossa prática quanto ao jejum nos dias de hoje no detalhe físico mencionado aqui. O princípio espiritual destacado (que não podemos servir a Deus desejando ser vistos pelos homens) continua sendo válido, mas o ato em si é mencionado aqui no contexto da Velha Aliança, e não podemos usar este trecho para aprender sobre o ato de jejuar na Nova Aliança.

ii) Respondendo aos discípulos de João

Os três Evangelhos sinóticos registram o questionamento dos discípulos de João e dos fariseus quanto ao fato dos discípulos do Senhor não jejuarem (Mt 9:14-15, Mc 2:18-20 e Lc 5:33-35 — doze ocorrências). O Senhor deixa claro que, enquanto Ele estivesse com os Seus, eles não teriam razão para jejuar, e acrescenta: “Dias porém, virão, em que lhes será tirado o esposo, e então jejuarão”. John Heading, citado acima, mostra que estes “dias” vindouros seriam “entre a Sua morte e Sua subsequente ressurreição” (Ibid., pág. 176). Adam Clarke, no seu comentário sobre este versículo, afirma que os cristãos primitivos entendiam desta forma as palavras do Senhor, referindo-se ao tempo que Seu corpo esteve no sepulcro.

Da mesma forma que o ensino anterior (no Sermão da Montanha), este também foi dado quando a Velha Aliança ainda estava em vigor, portanto não podemos aplicá-lo literalmente a nós hoje. Até o aspecto profético deste ensino — quando o Senhor fala que haveria um tempo em que os Seus discípulos jejuariam porque Ele estaria separado deles — já foi plenamente cumprido no período entre a Sua morte e ressurreição. Realmente “foi tirado o esposo” durante aqueles dias tão tristes, mas a tristeza dos discípulos logo se transformou em alegria quando viram o Senhor ressurreto — e a alegria que os inundou quando viram o Senhor vivo é uma alegria da qual disse o Senhor: “ninguém vo-la tirará” (veja Jo 16:16-22).

Hoje Ele não está ausente de nós — fisicamente, talvez, mas Ele mesmo prometeu estar conosco todos os dias e fazer morada em nós, Seus servos (Mt 28:20 e Jo 14:23). Lembrando disto, temos no ensino destes versículos que estamos considerando uma forte indicação de que o ato de jejuar não é necessário para nós nesta Dispensação. Durante o curto período em que o Senhor esteve separado dos Seus pela morte, eles tiveram razão para jejuar; mas desde o momento glorioso da ressurreição, tal razão não existe mais.

Este acontecimento, portanto, indica que não há muita razão para o cristão jejuar hoje, devido à comunhão especial que temos com nosso Salvador.

iii) Após a Transfiguração (Mt 17:21; Mc 9:29)

Este é outro trecho que pertence à Velha Aliança, e não podemos simplesmente transportar as práticas daquela Dispensação para os nossos dias. Devemos aprender com o princípio espiritual apresentado pelo Senhor Jesus, mas entender que não vivemos mais sob o jugo da Lei.

O princípio que o Senhor está apresentando é que aquela obra que Ele acabara de realizar (expulsando um demônio) não era algo que poderia ser feito displicentemente, mas que exigia um preparo prévio para verdadeiramente estar em comunhão com Deus. Heading explica que o Senhor está enfatizando que “colocar a alma em harmonia com Deus” não era algo automático, e sugere que o sentido de oração e jejum neste contexto é que “a oração é o contato contínuo do coração com Deus; o jejum é a contínua falta de contato com o mundo” (Ibid., pág. 305). Em outras palavras, para servir a Deus de forma eficaz, precisamos estar em contato com Deus continuamente (ilustrado pelo ato da oração), e dispostos a abrir mão até de coisas lícitas, se estas atrapalham nosso serviço (ilustrado pelo ato do jejum).

Este trecho também não se aplica literalmente a nós — ensina-nos lições espirituais, mas não nos fala nada sobre o ato do jejum para a nossa Dispensação.

iv) Escrevendo para a igreja em Corinto (I Co 7:5)

Esta quarta e última ocasião em que o Novo Testamento apresenta ensino relacionado ao jejum é a única que trata especificamente desta dispensação. As versões Atualizada e Corrigida da SBB omitem a palavra “jejum” neste versículo, mas ela é incluída pela versão da SBTB. O apóstolo não está dando ensino diretamente sobre o jejum, mas afirmando que um casal cristão deve dar importância à sua intimidade, apenas quebrando esta intimidade se for para aplicar-se “ao jejum e oração”, e logo depois ajuntando-se novamente.

Deste trecho podemos entender que, na igreja primitiva, era normal que cristãos praticassem o jejum. Mas é importante perceber que esta é a única passagem em todas as epístolas do Novo Testamento que dá ensino sobre o jejum (e isto, como já destacamos, indiretamente). Não é uma exortação para que jejuemos, nem são instruções sobre como jejuar, mas simplesmente um aviso para não permitir que a oração e o jejum interrompessem definitivamente a intimidade do casal; poderiam se separar para estas atividades, mas logo depois deveriam ajuntar-se novamente.

Devido à ausência de instruções claras quanto à prática do jejum, talvez podemos entender esta prática como um daqueles aspectos da Lei que demoraram um pouco mais para serem deixados de lado pelos judeus (como o voto que Paulo fez em Jerusalém; At 21:22-26).

v) Conclusão preliminar

Das dezenove ocorrências da palavra “jejum” e suas derivadas num contexto de ensino, vimos que apenas uma destas referências refere-se ao período em que nós vivemos, e simplesmente reconhece que alguns cristãos naquela época jejuavam. Se contrastarmos isto com as palavras do Senhor Jesus, quando disse que não fazia sentido Seus discípulos jejuarem enquanto Ele estava com eles, podemos concluir, por enquanto, que o jejum não é algo importante para esta Dispensação em que vivemos.

Mas resta ainda considerar os exemplos mencionados acima.

Exemplos de jejum no NT

Os seis exemplos de jejum no NT se dividem em dois grupos de três: os três primeiros referem-se à Velha Aliança, e os últimos três referem-se à Nova Aliança. Visto que os primeiros três não tem relação direta com o assunto deste estudo, basta mencioná-los: Ana (Lc 2:37), o Senhor Jesus (Mt 4:2), e o fariseu (na parábola de Lc 18:12).

O exemplo de Cornélio (At 10:30) também não serve para nos guiar, pois Cornélio nem era convertido quando jejuou. Pode ser que ele aprendeu sobre o jejum com os judeus (dos quais era amigo; At 10:22); mas sua prática tem mais a ver com uma busca religiosa da verdade por um incrédulo, do que com o serviço inteligente de um salvo.

Restam apenas os exemplos de Paulo e Barnabé; primeiramente com outros irmãos em Antioquia (At 13:1-3), e depois em outras igrejas no final da viagem que começou no cap. 13 (At 14:23). Um elemento em comum nestes dois exemplos é que o jejum está intimamente ligado à oração: “Então, jejuando e orando …” (At 13:3); “… orando com jejuns …” (At 14:23).

Estes exemplos são importantes; mas não podemos deixar de perceber o contraste com outras atividades no Novo Testamento, como a oração, por exemplo. Se temos três exemplos de jejum no livro de Atos e um nas epístolas (I Co 7:5), lemos de oração quase cem vezes nesta parte da Bíblia. O contraste é impressionante, e não pode ser ignorado.

Também precisamos destacar a ocasião destes exemplos. Ambos ocorreram por ocasião da primeira viagem de Paulo, que foi provavelmente no ano 48 a.D. Esta viagem foi feita antes de qualquer uma das epístolas do NT terem sido escritas, quando as igrejas locais ainda estavam na sua infância, e quando alguns elementos do judaísmo ainda permaneciam entre os salvos. Cerca de dez anos depois disto (por volta do ano 58 a.D.), lemos de “milhares de judeus que creem, e todos são zeladores da Lei” (At 21:20). Estes exemplos provavelmente indicam a demora dos judeus salvos em abandonar todas as práticas do judaísmo. Um judeu não teria tanta dificuldade para abandonar o Templo e os sacrifícios de animais; mas outros aspectos da Lei (como a circuncisão, o dízimo, o jejum) demoraram muito mais para serem deixados de lado (até mesmo por cristãos esclarecidos como Paulo, conforme o exemplo já citado do seu voto no cap. 21 de Atos).

Concluindo

Temos considerado, neste breve estudo, todas as referências ao jejum no NT, e descobrimos que, referente a esta Dispensação em que vivemos, encontramos:

  • Apenas um trecho doutrinário que menciona o jejum (I Co 7:5), e isto indiretamente;
  • Apenas dois exemplos de cristãos jejuando (At 13:1-3 e 14:23) — ambos ocorridos no ano 48 a.D., antes do Novo Testamento ser escrito, e antes do judaísmo ser completamente desarraigado do meio da Igreja.
  • Nenhuma exortação nas epístolas sobre o ato de jejuar, ou sobre o significado ou importância deste ato.
  • Uma profecia (Mt 9:15) feita pelo Senhor Jesus que indica que, nestes dias presentes, não temos razão para jejuar (pois o esposo está conosco todos os dias, até a consumação dos séculos).

Diante destes fatos, concluímos que o jejum não pertence a esta Dispensação em que vivemos. No seu sentido original (o ato de abster-se de alimentos como um exercício religioso; isto é, como uma forma de agradar a Deus), ele não tem nenhum valor nesta Dispensação, e os cristãos desta época da Igreja não devem jejuar meramente como um exercício religioso.

Há, porém, outra forma de entender a palavra “jejum”: o ato de abster-se de alimentos (ou outras coisas lícitas e necessárias) por algum tempo, para não atrapalhar algum serviço espiritual. Creio que esta forma de jejum (se dermos à palavra este sentido secundário) não só é lícito, como é proveitoso. Duas vezes lemos que o Senhor Jesus e Seus discípulos estavam tão ocupados ajudando os outros que “não tinham tempo para comer” (Mc 3:20 e 6:31). A expressão “orando com jejuns” em Atos 14 também indica isto, e sugere algo que muitos cristãos fazem regularmente: abrir mão de alimento (ou descanso, ou outra coisa necessária) porque há serviço para o Mestre que precisa ser feito urgentemente. Quantas irmãos e irmãs (principalmente nestes dias corridos em que vivemos) já abriram mão do jantar para poderem ir à reunião depois do trabalho num dia de semana; ou usaram a hora do almoço para visitar um enfermo, distribuir folhetos, ou conversar com um colega de escola ou trabalho que está interessado no Evangelho. Quantos irmãos e irmãs se entregam de tal forma à oração, que não tem tempo para comer (como o Senhor em Marcos caps. 3 e 6).

Se chamarmos esta entrega de “jejum”, certamente é algo do qual precisamos mais. Mas creio que o Novo Testamento deixa bem claro que o jejum, como mero exercício religioso, não tem valor nesta Dispensação.

Em terminar, preciso reconhecer que há irmãos piedosos e tementes a Deus que creem que o cristão deve jejuar ainda hoje. Fazem isto sinceramente diante do Senhor, e seguindo as orientações dadas no Sermão da Montanha (lavando o rosto para não parecer aos homens que jejuam — Mt 6:16-18). Respeito a convicção deles e não os julgo, mesmo ao repartir minha convicção neste pequeno artigo.

P.S. (19 Fev 2014). Acrescento abaixo um parágrafo sobre este assunto, extraído do Comentário Ritchie sobre o livro de Zacarias. O autor destas palavras é o irmão John Stubbs:

Sobre o assunto de jejuns, talvez seria bom considerar a pergunta se os cristãos hoje devem jejuar. Em primeiro lugar, não há ensino no Novo Testamento exigindo que os salvos jejuem, individual ou coletivamente. Isso não quer dizer que um salvo não possa jejuar. Eles jejuaram na igreja em Antioquia (At 13:3). Pode haver tempos quando o cristão considera conveniente disciplinar-se desta maneira para que possa ser mais devotado ao Senhor, em algum exercício espiritual. Abster-se de comer, ou de outras coisas legítimas, pode ajudar um cristão, mas não necessariamente outro. Se um cristão jejua, seria errado exigir que outros também jejuem. O Senhor Jesus ensinou que se o jejum for observado, deve ser feito sem nenhuma ostentação (Mt 6:16-18). Um ponto importante que devemos lembrar é que, quer seja nacional, na igreja, ou pessoal, o jejum em si mesmo não tem virtude alguma.

© W. J. Watterson